domingo, 6 de janeiro de 2013

A Doutrina da Graça de Deus


A Doutrina da Graça de Deus

Introdução

Qual é o papel da lei na vida do crente (Rm 7.1-6)? A ocorrência de uma pergunta no começo desta seção nos remete ao formato de diálogo usado anteriormente (Rm 3.1-9,27-31; 4.1-12). E o assunto da pergunta nos faz voltar à objeção levantada por seu parceiro de diálogo em Romanos 3.7,8. Paulo está uma vez mais abordando a acusação feita contra ele de que sua proclamação do evangelho da graça estava promovendo o pecado (6.1-14). Desta feita, o assunto é tratado mais definitivamente.

I. Morrer para Viver (6.1-14).

Em resposta à objeção do versículo 1, de que o pecado também pode ser encorajado se ocasiona mais graça — objeção que surge da declaração em Romanos 5.20 de que à medida que o pecado aumentou, a graça aumentou ainda mais — Paulo imediatamente vai ao âmago do assunto: O crente não pode permanecer no pecado porque ele morreu para o pecado (v.2).

a) “Como viveremos ainda nele?” (v. 2b). Não é um apelo moral, mas uma declaração de fato. Paulo não está perguntando: “Como viveremos?” Antes, sua pergunta implica: “Não vivemos!” Contudo, Paulo não está argumentando que o cristão é incapaz de cometer pecado (veja vv. 11-14), porque o “não vivemos” deriva do fato de ele entender que o pecado é um poder dominante (Rm 5.21). À medida que ele vai explicando, a morte do crente ao pecado significa que o domínio do pecado foi quebrado. Em suma, a resposta inicial de Paulo à acusação de que o evangelho promove o pecado é que a graça, ao invés de incentivar o pecado, na verdade provê o meio de escapar de suas garras fatais.

b) Morto para o pecado.  O que se segue (vv. 3-14) é comentário sobre a morte do crente ao pecado. Paulo usa o batismo nas águas, praticado pelos crentes desde o começo da Igreja (Mt 28.19; At 2.37-41), para explicar como o cristão morreu para o pecado (vv. 3,4). A linha do argumento de Paulo origina-se da pressuposição de que o rito do batismo está estreitamente ligado ao ato de a pessoa colocar a confiança em Cristo. O leitor encontrará em comentários vasta gama de interpretações relativas à função e significado do batismo em águas com base nesta passagem. De fato, é um texto importante para formular um entendimento teológico do rito. Infelizmente para nós, Paulo não se ocupa numa discussão ampla sobre esse assunto, porque: 

1) Ele presume que os romanos já estejam familiarizados com seu significado, e;

2) Ele está preocupado em extrair somente os aspectos que apóiem seu argumento de que o crente morreu para o pecado. Parte da razão para a diversidade de interpretação deste texto é o tratamento parcial do batismo em águas que Paulo oferece aqui.


II. A figura do batismo em águas: “batizados em Jesus Cristo” (v. 3).

O que podemos respigar aqui sobre o significado do batismo em águas? Uma interpretação comum é que sendo abaixado e depois erguido da água simboliza a morte e a ressurreição do participante com Cristo. Quer dizer, é uma metáfora para a conversão que ilustra o fim da velha vida e o começo da nova. Este entendimento remonta pelo menos a Tertuliano, mas não é certo que esta fosse a concepção vigente no século I. Uma leitura cuidadosa de Romanos 6 revela que Paulo vincula o batismo com o ato de ser enterrado com Cristo, mas que ele não diz que o convertido foi ressuscitado com Cristo no batismo — o que permanece um acontecimento futuro. Assim, no mínimo, esta passagem ensina que o batismo simboliza a participação do crente na morte de Cristo. Contudo, o simbolismo mais pleno de morrer e ressuscitar com Cristo pode estar no plano de fundo, pois talvez Paulo tenha escolhido somente a parte da tradição que se refere à morte de Cristo, porque seu argumento diz respeito a morrer para o pecado.

a) A essência do batismo cristão.  A essência do batismo cristão é expressa na frase “batizados em Jesus Cristo” (v. 3). Ser batizado “em” (eis) Cristo significa união com Ele ou o estabelecimento da relação. Beasley-Murray (p. 61) apresenta argumentos em favor do significado por trás de ser batizado em nome de Jesus: “No batismo, [...] o Senhor se apropria do batizado para si mesmo e o batizado possui Jesus como Senhor e se submete ao Seu senhorio”.

Nossa concepção de como o crente participa na vida de Cristo deve ser entendida em termos relacionais. Citando Beasley-Murray novamente (p. 62): “Porque o batismo significa a união com Cristo, Paulo via que o rito estendia a união de Cristo em suas ações redentoras”. Visto que fomos colocados numa relação com Ele, participamos dos benefícios da sua vida: Fomos crucificados com Ele (v. 6), morremos e fomos sepultados com Ele (vv. 4,5,8) e seremos ressuscitados com Ele (vv. 5,8). Isto não quer dizer que tomamos parte na sua obra substitutiva ou que de algum modo místico estávamos de fato lá com Cristo, quando Ele foi crucificado. Nosso Senhor sofreu e morreu sozinho. Mas isso tem algo a dizer sobre o modo como Paulo via a conexão entre o Senhor e seus seguidores.

1)   Quando o crente é unido com Cristo, é unido com o Senhor. Isto requer submissão completa, não submissão mútua ou amigável (e assim a chamada à obediência começa no v. 11).

2)   A pessoa atraída ao mundo do Senhor toma parte completa nas conseqüências das ações de Cristo em um grau sem paralelo nas relações humanas. Cristo é mais que alguém com quem nos relacionamos; Ele também é nosso representante.
É certamente apropriado dizer, como fazem muitos comentaristas dos dias de hoje, que participamos dos benefícios da vida de Cristo porque Ele é nosso representante. Assim como estávamos em Adão e, portanto, compartilhávamos as conseqüências do seu pecado, assim estando em Cristo compartilhamos os resultados da sua obra. Nossa solidariedade com Ele na função de nosso representante transfere seus atos para nós. Mas não devemos perder o sentido relacional mais pessoal que está por trás desta idéia. É porque o conhecemos que tomamos parte em sua vida.
III. Morrer para o Pecado

Paulo começa o capítulo 6 mostrando que os crentes não podem permanecer sob o poder do pecado, porque eles morreram para o pecado. Ele se refere à experiência dos leitores com o batismo nas águas para estabelecer este ponto. Como ele o fez em Romanos 5.5 (quando usou a experiência do batismo com o Espírito para lhe garantir a esperança futura), aqui ele escolheu uma experiência vívida para convencê-los de uma realidade espiritual. O batismo em águas significa que a união com Cristo também é uma união com Ele na sua morte.

Quando ocorre a morte com Cristo na vida do convertido? Visto que Paulo usa o batismo para transmitir esta idéia e considerando que o batismo está associado com o começo da vida do cristão, presume-se que ocorre no momento da conversão. É “pelo [dia] batismo” (v. 4) que a pessoa é sepultada. Paulo diz “pelo batismo”, não porque o próprio rito efetua a morte com Cristo. O rito apresenta em forma pública a decisão da pessoa em começar a vida com Cristo.

a) Interpretações do ritual do batismo.  Entre as tradições que vêem o batismo como símbolo da experiência de salvação (e.g., os batistas, os pentecostais), e não sacramentalmente como meio da graça salvadora (e.g., os católicos romanos, os luteranos), há o perigo de que a importância e imperativo do rito sejam diminuídos. O que está em jogo é a perda da conexão do batismo em águas com o significado do começo da vida cristã.

A razão por que fomos sepultados com Cristo é dada ao término do versículo 4: de forma que “assim andemos nós também em novidade de vida”. Estas não são as palavras que poderíamos esperar. Para complementar a declaração de que morremos com Cristo, esperaríamos Paulo dizer, depois de uma referência à ressurreição de Cristo, que nós também fomos ressuscitados com Ele. Mas ele diz que, por causa da ressurreição de Cristo, andamos agora em novidade de vida.

Embora ainda venhamos a ser ressuscitados com Ele, já tomamos parte na vida da ressurreição. Estamos vivendo de acordo com as condições do mundo por vir conforme elas podem ser desfrutadas, visto que ainda vivemos segundo as restrições do presente mundo. Esta é a maneira de Paulo entender a existência cristã neste período transitório (a chamada estrutura escatológica “já, mas ainda não”) entre a nossa passada morte com Ele e a nossa ressurreição futura. (O papel do Espírito Santo em mediar a vida do Cristo ressurreto nos crentes será explicado em Rm 8 [veja também Rm 7.6].) A era de Cristo irrompeu na era de Adão, e o crente é transferido a esta era nova pela morte de Cristo. Nossa orientação foi para sempre alterada, pois a graça transformou nosso passado, presente e futuro.

Contudo, as condições da era nova não serão experimentadas completamente até à ressurreição futura dos crentes, quando a velha era tiver passado inteiramente. Nesse entretempo, ainda somos influenciados pelas condições mundanas postas em ação pelo que Adão fez. Ainda estamos sujeitos à morte física e ainda somos tentados pelo pecado. A perspectiva de Paulo acerca da sobreposição das duas eras (Rm 5.12-21) reflete a cosmovisão da escatologia apocalíptica (veja “A Escatologia Apocalíptica de Paulo”, na Introdução).
b) Propósito da imagem batismal.  No versículo 5, a imagem batismal é posta de lado, tendo servido seu propósito de ilustrar a morte do crente ao pecado. Em primeiro plano, há o motivo de morrer e ressuscitar com Cristo. Por duas vezes nos versículos 5 a 10 Paulo declara que, tão certo quanto a identificação com Cristo significa morte com Ele, assim também significa ser ressuscitado com Ele (vv. 5,8). Seu enfoque permanece no aspecto anterior, à medida que ele continua discutindo a natureza da morte do cristão ao pecado.

Note como o apóstolo descreve a situação escatológica do crente com o uso de tempos verbais diferentes. O verbo traduzido por “fomos”, no versículo 5a, está no perfeito (gegonamen), significando que nossa união com Ele em sua morte é um acontecimento passado com efeito permanente. Esse efeito é a nossa liberdade do poder do pecado. Porém, a união do crente com a ressurreição de Cristo está no futuro (“seremos”). Alguns argumentam que este é um futuro lógico (lógico no sentido de que segue nossa morte com Cristo e, assim, realmente denota nosso estado atual). Esta não é a melhor interpretação.

Nem o futuro deve ser entendido como imperativo moral (o tipo de tempo futuro que vemos na maioria dos Dez Mandamentos) — ou seja, que temos de ser conformados à ressurreição de Cristo em nosso comportamento presente. Antes, este é um futuro real, expressando a verdade da ressurreição final.

É por isso que Paulo não coloca nossa ressurreição com Cristo no passado (cf. Ef 4.22-24; Cl 3.9-11, onde ele fala de uma ressurreição espiritual). Tannehill (p. 12) explica os aspectos presente e futuro de ser ressuscitado com Cristo: “O crente participa na nova vida no presente, mas Paulo tem cuidado em deixar claro que isso não se torna possessão do crente. É realizado mediante uma entrega ininterrupta das atividades da pessoa a Deus, um andar em novidade de vida e, ao mesmo tempo, permanece um dom de Deus para o futuro”.

Em suma: sob a lei o pecado aumenta; sob a graça, seu poder é aniquilado.

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