sábado, 21 de março de 2015

O chamado dos primeiros discípulos



O chamado dos primeiros discípulos (1.35-51)

35-37         Este dia seguinte veio após o testemunho de João, registrado nos versículos 29-34. O cuidado com que os dias subsequentes são enumerados nesta parte da narrativa (1.29, 35, 43, 2.1) indica que ela se baseia em pesqui­sas de alguém que participou dos acontecimentos descritos e que trazia grava­da em sua memória, mesmo tanto tempo mais tarde, a sequência detalhada do seu primeiro encontro com Jesus. Na verdade, não há nada contra a ideia de que este participante foi um dos dois discípulos mencionados, cujo nome não é dado. João tinha muitos discípulos; estes dois tornaram-se discípulos de Jesus, mas outros continuaram em companhia de João enquanto ele viveu e alguns, até depois de sua morte, diziam ser seus discípulos. Como no dia anterior, Je­sus foi visto andando após eles, e João chamou a atenção dos seus discípulos para ele, repetindo o título que já lhe tinha dado: o Cordeiro de Deus (veja o versículo 29 AQUI). Ouvindo isto, os dois imediatamente foram atrás de Jesus. (O verbo seguiram está no tempo aoristo, que pode ser tomado como exemplo do aoristo “ingressivo”: “Eles se tornaram seus seguidores”.)

Não sabemos com certeza que reação João esperava que seus discípu­los tivessem às suas palavras, mas eles imediatamente abandonaram seu mestre e apressaram-se para se juntar a Jesus. Certamente eles não compre­enderam a profundidade do significado que leitores modernos veem no título o Cordeiro de Deus; mas é provável que eles tenham entendido que João estava lhes indicando este homem como Aquele que vem, sobre quem falara antes. Não é de admirar, portanto, que eles estavam ansiosos por conhecer mais so­bre ele.

38,39         Jesus sabia muito bem o que eles queriam; a intenção de sua per­gunta era simplesmente dar-lhes uma oportunidade de dizerem o que tinham em mente. O que eles queriam era conhecê-lo, mas afirmar isto poderia parecer presunção; eles se contentaram em perguntar onde ele morava. Trocar algu­mas palavras com ele, parados no caminho, foi bom; serem convidados para acompanhá-lo e ter uma conversa mais tranquila e descontraída foi melhor. O título respeitoso Rabi (literalmente “meu grande”) é traduzido pelo evangelista para que seus leitores gregos pudessem entendê-lo. Durante o primeiro século, ele passou a ser usado em sentido quase técnico para indicar alguém ordenado como professor depois de um curso apropriado de instrução rabínica, mas foi dado a Jesus como título de cortesia pelos que viram nele um mestre enviado por Deus, como o fez Nicodemos (Jo 3.1).

O convite com o qual, talvez, nem se arriscavam a contar foi feito, como ainda é para todos que querem conhecê-lo melhor: Vinde, e vede. Assim, eles foram com Jesus até o lugar onde ele estava hospedado, e ficaram com ele o resto daquele dia (BLH). A hora décima (a contar do nascer do sol) correspon­dia aproximadamente às 16 horas, quando os homens começavam a interrom­per o trabalho do dia (Alguns escritores dizem que João seguiu a contagem “romana”, a começar da meia- noite. Às vezes, Plínio, o Velho, é citado para apoiar este ponto de vista. Todavia, o que Plínio diz é que os romanos (como os egípcios) definiam o dia civil como começando e terminando à meia-noite (História Natural 2.79.188). Eles dividiam o período de luz (da alvorada ao pôr-do-sol) em doze horas, e o período escuro (do pôr-do-sol à alvo­rada) em quatro vigílias. Veja Jo 4.6,52, 19.14.). Não nos foi relatado o que ele lhes disse, mas foi sufi­ciente para convencê-los de que João não se enganara; este era de fato Aquele que vem, o Messias esperado. Notícias tão maravilhosas não podiam ser guar­dadas para si; seus amigos precisavam saber delas.

40-42         Nas décadas cristãs seguintes, o nome de Simão Pedro tornou-se tão conhecido a ponto de André ser chamado aqui de seu irmão, mesmo surgindo antes de Pedro na sequência histórica do evangelista. (O outro discí­pulo não é identificado pelo nome.) A primeira coisa que André fez depois de conhecer Jesus foi buscar seu irmão para que este o conhecesse também. A ARA traduz literalmente seu próprio irmão Simão, dando ao pronome idios todo seu peso clássico; porém, naquela época, idios, quando seguido de substanti­vo, tendia a perder sua ênfase, sendo usado como simples pronome possessi­vo (Veja em At 24.24 outro exemplo do uso “pleno” de idios:Drusila, sua (própria) mu­lher”.). O pronome é enfático no versículo 11, onde aparece duas vezes e não é seguido de substantivo.

André disse: Achamos o Messias. Este adjetivo verbal semita aparece somente neste evangelho no N.T., onde é visto duas vezes - aqui e em 4.25. Nas duas vezes ele é interpretado pelo equivalente grego christos. No A.T. o adjetivo verbal era usado para designar o rei de Israel (o “ungido do Senhor” como em 1 Sm 16.6, etc), o sumo sacerdote (o “sacerdote ungido”, como em Lv 4.3, etc) e uma vez, no plural, para os patriarcas em seu papel de profetas (“meus ungidos”, Sl 105.15). No início da era cristã, a expectativa messiânica concentrava-se no rei, mas no seu cumprimento Jesus provou ser o Messias por excelência, com as três funções: profeta, sacerdote e rei. Não podemos saber com certeza o que André quis dizer com o título Messias nesta altura; sem dúvida seu conceito foi influenciado pelas cores que a esperança de Israel tomava na época. Todavia, quando ele e seus colegas discípulos começaram a conhecer Jesus melhor, seus primeiros conceitos do Messias e de sua ativida­de foram substituídos em suas mentes pelo verdadeiro caráter e ministério de Jesus.

André, pois, trouxe seu irmão a Jesus. Anos mais tarde, quando Simão Pedro fazia obras tão grandiosas em nome de Jesus - em Jerusalém no primei­ro Pentecoste cristão, em Cesaréia quando os gentios pela primeira vez ouvi­ram e creram no evangelho, e em lugares bem mais distantes - André deve ter se lembrado com profunda satisfação daquele dia em que promoveu o encontro entre seu irmão e seu mestre. Ninguém pode prever, ao levar um homem ou uma mulher a Jesus, o que ele fará desta pessoa.

Jesus, por sua vez, viu o que poderia fazer do irmão de André, e deu expressão a seu propósito em sua saudação. Simão Bar-Yohanan, o nome com­pleto pelo qual Simão era conhecido, é abreviado em Mateus 16.17 para “Simão Barjonas” e traduzido aqui por Simão, o filho de João. Com um homem como este, Jesus podia começar a fundar sua nova comunidade. Às vezes, traça-se uma linha entre o novo nome que Jesus dá a Simão e uma antiga parábola rabínica, que explica por que Abraão é chamado de “a rocha” em Isaías 51.1, da qual Israel foi cortado. A história é assim: “Certo rei quis construir um palácio, e seus trabalhadores cavaram fundo para achar um fundamento firme. Depois de cavar por dois longos turnos, fizeram sondagens, mas só acharam argila. Fi­nalmente, porém, eles bateram na rocha (petra), e ele disse: Agora posso fazer um começo” (A parábola foi preservada na coletânea medieval Yatqut Shinf‘ônf (1766). As duas menções mais antigas são do tempo de Enos, quando “se começou a invocar o nome do Senhor” (Gn 4.26), e de Noé, que “achou graça diante do Senhor" (Gn 6.8).).

Tendo ou não algo assim em mente, Jesus saudou Simão como Kepha, uma palavra aramaica que significa “rocha” (A palavra hebraica correspondente êkêph, que é encontrada com o sentido de “rocha” em Jó 30.6 e Jr 4.29.). Era por este nome que Paulo geralmente o chamava, acrescentando um -s final (Cephas) para adaptá-lo à língua grega (veja 1 Co 9.5, Gl 1.18, etc). Com mais frequência, entretanto, a palavra aramaica foi traduzida para a forma grega Petros (como no nosso tex­to). Discussões sobre a possível diferença no significado de petros e petra es­tão fora do assunto aqui; para o nome de um homem era preciso usar a forma masculina Petros, qualquer que fosse o seu significado.

43,44         Parece que André levou seu irmão a Jesus no entardecer do dia, cujos eventos são descritos nos versículos 35-42. Agora, avançamos para o dia seguinte. Mas quem resolveu partir para a Galileia, e encontrou a Filipe ? A primeira resposta que vem à mente é que foi Jesus. Porém, então por que o nome Jesus é inserido antes do próximo verbo, disse, como se houvesse uma mudança de sujeito? (Esta é a sequência no texto grego.) Será que não foram André ou Pedro que acharam Filipe, seu concidadão? (Em Marcos 1.29 fica implícito que, quando Jesus começou seu ministério na Galileia, Pedro e André já tinham fixado residência em Cafarnaum, a ocidente do lago (veja Jo 2.12).). Se foi André, temos um sentido adicional para a palavra “primeiro” no versículo 41; significaria que a primeira pessoa que André encontrou e trouxe a Jesus foi seu irmão Simão e a seguinte, Filipe. Todavia não podemos ter certeza, por causa da ambiguidade formal da linguagem. Pode ser que Jesus, partindo para a Galileia, deparou com Filipe voltando para casa, vindo do lugar na Peréia onde João estava batizando, e o convidou a juntar-se a seus seguidores. Segue-me ou venha comigo (BLH) aparece aqui pela primeira vez neste evangelho; provavelmente devemos reco­nhecer um tom de autoridade na ordem: mão no ombro e as palavras que com­binam com a ação: “Você, venha comigo!”

Moffatt põe as coisas como se Jesus tivesse achado Filipe depois de chegar à Galileia: “No dia seguinte Jesus decidiu ir para a Galileia; ali ele en­controu Filipe e lhe disse: Segue-me”. Mas esta não é a maneira normal de en­tender a narrativa.

Betsaida significa “casa do pescador” ou “cidade dos pescadores”. Ela estava localizada um pouco para o leste do lugar onde o Jordão desemboca no lago da Galileia, talvez perto do lugar em que o porto natural de el-‘Araj ainda existe. Um pouco antes de 2 a.C., o tetrarca Filipe reconstruiu-a (aparentemente incluindo o povoado vizinho agora chamado et-Tell) e chamou-a Julias, em homenagem à filha de Augusto, cujo nome era Júlia. A referência em João 12.21 a “Betsaida da Galileia”, como cidade de Filipe, não indica necessaria­mente a costa ocidental do lago; no uso popular, a Galileia também podia incluir terras a leste do lago. (“Judas, o galileu”, mencionado em At 5.37, na verdade era de Gamala, a leste do lago.)

45.    Assim, o número de seguidores de Jesus foi aumentando neste dia, enquanto pessoas se encontravam e compartilhavam as boas notícias. Os ou­tros discípulos mencionados nestes versículos constam da lista de doze após­tolos dos evangelhos sinóticos; por isso muitos acham que Natanael também está na lista, com o sobrenome Bartolomeu (isto é, filho de Tolomai ou Ptolomeu). Em Mateus 10.3, Marcos 3.18 e Lucas 6.14 Bartolomeu é relacionado com Filipe (entretanto, não em At 1.13).

O que Filipe disse a Natanael significa praticamente a mesma coisa que André disse a Simão (v. 41); só que, em vez de chamar Jesus de Messias, ele o descreve como alguém de quem Moisés e os profetas escreveram. O papel de Jesus como cumpridor das profecias do A.T. é destacado de diversas maneiras neste evangelho. Ele é o profeta de quem Moisés falou em Deuteronômio 18.15-19 (veja o v. 21, acima); ele é o ungido do Senhor, predito pelos profetas, que viria para instituir justiça mundial, paz e o conhecimento e temor do Senhor. Ao referir-se a nosso Senhor como Jesus, o Nazareno, filho de José, Filipe mencionou toda sua identificação normal; ao nome da pessoa acrescentava-se o de seu pai (verdadeiro ou suposto) e de sua cidade natal.

46.    Natanael também era galileu, de Caná (veja Jo 21.2). A forma de sua pergunta deixa transparecer que Nazaré (sobre a qual recai a ênfase) não gozava de boa reputação entre os outros galileus. Não temos outras evidências desta má impressão, mas ela não é surpreendente, já que a cidade era de pou­ca importância. Ela “surgiu no mapa” pelo fato de Jesus ter passado a maior parte de sua vida ali. (A referência judaica mais antiga é uma inscrição escava­da em Cesaréia, em 1962, que alista os lugares na Galileia para onde emigra­ram membros das vinte e quatro ordens sacerdotais depois que uma cidade pagã foi construída no lugar de Jerusalém em 135 d.C.) (Veja M. Avi-Yonah, “The Caesarea Inscription of the Twenty-Four Priestly Courses” em The Teachefs Yoke, ed E. J. Vardaman e J. L. Garrett (Waco, Texas, 1964), pp.46-57. Foi somente do quarto século d.C. em diante que Nazaré passou a ter alguma impor­tância, mas há vestígios de povoação tão antigos quanto a Idade Média do Bronze (en­tre 2000 e 1550 a.C.).). Pessoas que moram no interior sabem como um pequeno povoado pode ter uma péssima fama entre seus vizinhos, sem que se torne conhecido por isto. Seja como for, a pergunta zombeteira de Natanael recebeu a única resposta adequada: Vem, e vê. Infor­mar-se com honestidade é a melhor cura para os preconceitos. Nazaré podia ser tudo o que Natanael pensava, mas há uma exceção que põe à prova toda regra; e que exceção este jovem achou!

47.    Para surpresa de Natanael, Jesus, ao vê-lo, saudou-o como se o conhecesse muito bem. E que elogio Jesus lhe fez! Entendemos melhor o objetivo do elogio da conversa que segue, com sua referência à escada de Jacó. “Vem aí um verdadeiro filho de Israel” podemos parafrasear as palavras de Jesus (NTV), “alguém que é completamente Israel e nem um pouco Jacó”. Seja qual for a etimologia do nome Jacó (Deriva-se de 'ãqeb, “calcanhar”; yaTiqõb significa “ele me ergue pelo calcanhar”, e daf, por extensão, “ele me sobrepuja".), ele é associado tradicionalmente a engano. Quando Isaque disse a Esaú: ‘Veio teu irmão astuciosamente (LXX dolos, a palavra usada aqui por João), e tomou a tua bênção”, Esaú respondeu: “Não é com razão que se chama ele Jacó (heb. ya‘aqõb)? pois já duas vezes me enganou (ya‘acfbêni)" (Gn 27.35s.).

Apesar da fama não invejável de Nazaré, a generosidade transparente do coração de Natanael tornou-o disposto a vir e ver este Nazareno que Filipe di­zia ser aquele predito na lei e nos profetas. Jacó, apesar de toda a astúcia as­sociada a seu nome, recebeu uma visão de Deus que mudou seu caráter, e re­cebeu o nome Israel para marcar esta mudança (Gn 28.10ss. 32.24-28). A pa­lavra Israel, na verdade, é derivada do verbo hebraico sãrãh (“lutar”), mas no primeiro século circulava uma etimologia popular (como podemos ver em Filo de Alexandria) que explicava o nome com a frase em hebraico 'ishtCeh-^l (“o homem que vê Deus”); pode haver aqui uma alusão a esta etimologia, porque Natanael, este membro típico do verdadeiro Israel crente, re­cebe a promessa de que ele e seus companheiros terão uma visão como a que Jacó teve.

48.    Aludindo a algo conhecido somente a Natanael, Jesus lhe fez enten­der que sabia sobre ele muito mais do que poderia imaginar. Nós só podemos supor o significado da figueira. C.F.D. Moule sugeriu que a frase debaixo da fi­gueira indicava “um conhecimento detalhado de onde uma pessoa estava e do que fazia”. Talvez fosse um lugar em que Natanael recentemente estivera meditando e recebera alguma impressão espiritual. É impossível ter certeza.

Certamente, a folhagem fechada da figueira tornava-a adequada para dar som­bra no calor do dia. Era debaixo de uma figueira que Agostinho estava meditan­do quando ouviu a voz cantando: “Levante e leia”! e viu sua alma inundada de luz celestial ao levantar o livro e ler as últimas palavras de Romanos 13 (Agostinho, Confissões 8.29.).

49.    Qualquer dúvida que Natanael ainda tinha desapareceu no mesmo instante. A pessoa que demonstrava um conhecimento tão completo de passos e pensamentos, sem dúvida era aquela para quem as profecias antigas aponta­vam. Ele chama Jesus pelo título de cortesia Rabi (ARC), (Mestre, ARA), mas vai adiante dando-lhe títulos bem mais grandiosos. Na verdade ele o está acla­mando como Messias, usando dois títulos messiânicos que constam do segun­do salmo, onde Deus diz ao rei ungido de Israel, entronizado no monte santo Sião: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (Sl 2.6s.). Quando o evangelista es­creveu, a expressão o Filho de Deus tinha um sentido muito mais profundo, mas não precisamos supor que Natanael, num estágio tão inicial de sua carreira como discípulo, tenha querido dizer muito mais do que simplesmente “Rei de Is­rael”; era uma alternativa para indicar o Messias. Todavia, no contexto do relato do evangelho, os dois títulos transmitem ao leitor um significado mais completo do que aquele que Natanael poderia ter-lhes dado.

50,51.        As palavras de Jesus sobre a experiência de Natanael debaixo da figueira demonstraram seu conhecimento sobrenatural, mas Natanael seria confrontado com provas muito mais maravilhosas e conclusivas da verdadeira identidade de Jesus. E não só ele: no versículo 51 a transição da segunda pes­soa do singular para a segunda do plural (vereis) indica que seus colegas te­riam as mesmas experiências.

Ao anunciar umas destas maiores coisas, Jesus pela primeira vez neste evangelho usa sua palavra característica de afirmação solene, Amém (traduzi­da em verdade na ARA e BJ, na verdade na ARC e IBB). Nos evangelhos sinóticos a frase em verdade, em verdade vos digo só tem um amém', a repetição é uma característica joanina, como aqui (A BLH traduz o “Amém" duplo por “eu afirmo”. De acordo com B. Lindars, a expressão é “um sinal repetido de que João faz uso de um dito de Jesus retirado de seu estoque de material tradicional” (Behind the Fourth Gospei, Londres, 1971, p.44).). Amém, em sua origem, é uma palavra hebraica que significa “constante” ou “certo”; da mesma raiz vêm as palavras hebraicas que indicam “fé”, “fidelidade” e “verdade”. Ela era usada na liturgia (veja Sl 41.13, etc.) para expressar a certeza de que uma oração (p. ex. para que o nome de Deus seja glorificado) seria ouvida. Na boca de Jesus ela con­firma a certeza e confiabilidade do que ele diz, e foi preservada sem tradução na igreja de fala grega como sua ipsissima vox, que indica sua autoridade es­pecial.

As palavras que se seguem podem ser um paralelo joanino à predição sinótica do dia em que o Filho do Homem seria manifesto nas nuvens do céu “com grande poder e glória” (Mc 13.26,14.62) (A frase “filho do homem" é uma figura de linguagem hebraica e aramaica que significa simplesmente “um homem”, “um ser humano”. Em aramaico, o idioma que Jesus pa­rece ter falado geralmente, “o Filho do homem” significa simplesmente “o Homem”. Às vezes, Jesus pode ter usado esta expressão em substituição ao pronome “eu” (veja sobre Jo 3.27), mas geralmente um significado mais amplo está implícito. A forma grega ho hyios tou anthrõpou aparece no N.T. somente em referência a Jesus e quase sempre na sua própria boca. Somente uma vez (Jo 5.17) ele a usa sem o duplo artigo definido.). No presente texto a ideia é ti­rada do relato da visão de Jacó em Betel, quando ele viu “posta na terra uma escada, cujo topo atingia o céu; e os anjos de Deus subiam e desciam por ela” (Gn 28.12) (É possível traduzir o hebraico: “...os anjos de Deus subindo e descendo sobre ele (Ja­có)". De acordo com uma tradição rabínica preservada no comentário posterior Genesis Rabba 69.7 (sobre Gn 28.17), a escada de Jacó estava no lugar do futuro templo; isto implica em entender Betel em termos etimológicos (“a casa de Deus”), e não geográfi­cos.). Nesta aplicação da visão de Jacó, no entanto, a ligação entre céu e terra é feita pelo Filho do Homem; ele é o mediador entre Deus e a raça humana (No Sl 8.4 “o filho do homem” (heb. ben "adam) forma um paralelismo sinôni­mo com “homem” (heb. 'êriõsh), e as duas expressões são usadas em termos ge­néricos.). E não só isto: a ocasião para a qual as palavras de Jesus apontam é nada menos que sua crucificação. Em outra oportunidade, mais tarde, ao falar para uma audiência de Jerusalém, ele disse: “Quando levantardes o Filho do homem, então sabereis que eu sou” (Jo 8.28). “Ser levantado” é sua exaltação, apesar de a intenção de seus inimigos ser sua degradação; a cruz é a mani­festação suprema da sua glória. Através da cruz, o céu é amplamente aberto, Deus aproxima-se do ser humano e este é reconciliado com Deus.

O patriarca santo teve um sonho sem igual; assim a cruz do Salvador é escada para o céu.

A identificação Filho do homem parece não ter sido um título costumeiro do Messias ou algum outro personagem escatológico. Por isso, Jesus podia usá-lo para si sem correr o risco de ser mal entendido devido a associações de ideias que pudessem ter influenciado a concepção do seu significado em seus ouvintes. Ele tinha toda a liberdade de assumir a expressão e preenchê-la com o significado que quisesse.
É provável que a expressão tivesse um antecedente veterotestamentário na frase “um como o Filho do homem” (ou seja, um ser parecido com um homem) que, na visão que Daniel teve do dia do julgamento, estava investido de autoridade divina universal (Dn 7.13,14). Jesus enriqueceu-a ao fundi-la com a figura do sofredor justo, retratada aqui e acolá no A.T., não por último nos “Cânticos do Servo” de Isaias 42.1-53.12. Desta maneira ele podia falar do so­frimento do Filho do homem como de algo que estava “escrito” sobre ele. Atra­vés do seu sofrimento e da sua recompensa, Jesus, o Filho do homem, tornou-se o libertador e advogado do seu povo.

Alguns estudiosos dos evangelhos sinóticos distinguem entre passagens que falam do sofrimento do Filho do homem e as que falam da sua vinda em glória. Neste evangelho não há tal distinção; o sofrimento do Filho do homem é ab­sorvido pela glória, de modo que a glória revela-se principalmente no sofrimento (veja Jo 12.23).

Bibliografia F. F. Bruce

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