sábado, 21 de março de 2015

Vocação dos Discípulos




João Batista repete seu testemunho sobre Jesus como o Cordeiro de Deus na presença de dois de seus discípulos (v. 36). É assim que ele fez que Jesus “fosse manifestado a Israel”. Com efeito, ele entrega seus próprios discípulos a Jesus. Um desses dois é André (v. 40), mas o outro não é identificado. A presunção largamente difundida é que esse segundo discípulo seja o próprio autor do Evangelho, o “discípulo amado” men­cionado cinco vezes na segunda metade do Evangelho. Mas nem todos os discípulos anônimos têm que ser esse, o “amado”. É mais provável que o segundo discípulo seja Filipe (cf. 1:43), que aparece ao lado de André em duas outras ocasiões (6:5-9; 12:21-22) e que, à semelhança de André, traz alguém a Jesus (1:43-51). Os dois discípulos nos versículos 35-39 antecipam, assim, os versículos 40-42 e 43-51, respectivamente: Jesus chama André e Filipe; André traz seu irmão Simão a Jesus, enquanto Filipe traz Natanael.

A história do chamado é classicamente simples. Os dois discípulos ouvem a proclamação de João e seguem a Jesus. O fato de que seguiram, entretanto, conotando discipulado, não é o fim da história, mas o começo. Jesus lhes pergunta o que estão procurando e eles dizem que querem ver onde o Senhor mora. E assim fazem uma visita ao domicílio de Jesus em Betânia, onde passam o dia com o Senhor. Interessado na exatidão, o narrador acrescenta a qualificação de que na verdade passaram apenas uma parte do dia com Jesus, porque já era quase a hora décima (quatro horas da tarde, v. 39) {hora décima: Os judeus contavam as horas começando pelas 6 da manhã. Alguns têm argumentado que o Evangelho de João segue, ao invés, um sistema romano-egípcio semelhante ao nosso, em que o dia se inicia à meia-noite. Isto significaria que os dois discípulos se encontraram com Jesus às dez horas da manhã. A contagem das horas se torna uma questão difícil na fixação da hora exata em que Jesus morreu (cf. 19:14); contudo, a obrigação de provar que o autor não segue o sistema judeu, comum, cabe aos que defendem a ideia do sistema romano-egípcio.}, e o dia acabava ao pôr-do-sol. O que mais importava não era quanto tempo passaram juntos, mas o fato de terem estado com Jesus. Ele se tornou o rabi deles (o mestre, v. 38; cf. 13:13). Discipulado, neste Evangelho, não significa apenas seguir a Jesus mas permanecer com ele. De tempos em tempos Jesus ficaria com seus discípulos, ou candidatos a discípulos, à parte, entre um e outro confronto público com as autoridades de Jerusalém (e.g., 2:12; 3:22; 4:40; 6:3; 10:40-42; 11:54; 18:2). Antes de partir deste mundo, Jesus pede a seus discípulos que “permaneçam” unidos a ele, permanecendo em seu amor e obedecendo a seus mandamentos (15:1-10). O discipulado se inicia deixando a vida pregressa a fim de “seguir” Jesus (cf. Mc 1:16-20) e completa-se ao “seguir” o Senhor até à morte de mártir, ou “permane­cendo” fiel a ele numa vida de obediência amorosa (cf. Jo 21:19-23).

Se os dois discípulos passaram o resto do Terceiro Dia com Jesus, os eventos dos versículos 40-42 devem ter ocorrido no Quarto Dia. Entretanto, o dia seguinte só é anunciado no v. 43. Por quê? Parece que o narrador não quer que o chamado de Simão Pedro (versículos 40-42) fique à parte do relato mais extenso do chamado de Natanael, em que se concentra o principal interesse. O chamado de Simão Pedro é parte da tradição do autor, que não deseja deixá-lo fora mas, a bem da verdade, não há um dia especial devotado à vocação de Simão nessa sequência de seis dias. O evento é um apêndice ao Terceiro Dia, incluído com o objetivo de completar a narrativa e preparar as pessoas para os eventos do Quarto Dia. André {A primeira coisa que André fez. A palavra grega éproton, “primeira”, palavra usada como advérbio. Alguns manuscritos antigos trazem protos (dando como tradução: “André foi o primeiro”). Outros trazem proi (“no dia seguinte, pela manhã”). Esta última alternativa, embora incorreta, produz um quadro exato da sequência dos acontecimentos.} encontra Simão e lhe diz: Achamos o Messias (v. 41); Filipe encontra Natanael e lhe diz: Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei (1:45); Jesus diz que Simão é pedra (Cefas ou Pedro, v. 42), e Natanael, um verdadeiro israelita (1:47). Mas os paralelismos param aqui. A entrevista de Jesus com Simão Pedro encer­ra-se tão abruptamente como se iniciou, enquanto Natanael prossegue, professando sua fé e recebendo uma promessa em prol de todos os discípulos (1:45-51).
Se dispuséssemos de apenas esta parte introdutória da narrativa, chegaríamos à conclusão de que Simão Pedro foi um figurante de menor importância, no Evangelho de João, e que Natanael teve grande projeção, mas, no decorrer dos acontecimentos, o inverso é que é verdadeiro. A profissão de fé de Pedro não é omitida, apenas adiada (6:68-69); o leitor aprenderá mais a respeito dele do que de qualquer outro discípulo (ver 13:36-38; 18:15-18,25-27; 21:15-19). Pouca importância é dada ao novo nome de Simão. Não existe um texto equivalente ao de Mateus, em que há uma promessa a Pedro: “sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mt 16:18). Embora esse discípulo seja chamado comumente de “Pedro” ou “Simão Pedro”, Jesus ainda o chama, às vezes, de “Simão, filho de João” já no fim, como em 21:15-17. A tradição de Pedro, a Rocha, é preservada e reafirmada; contudo, para o autor do Evangelho, o mais importante é Simão, o Pastor (outra vez cf. 21:15-17).
A “vocação” de Filipe é diferente da vocação descrita nos versículos 35-39. Jesus “encontrou” Filipe (v. 43) da mesma maneira que André “achou” seu irmão Simão (v. 41), e como Filipe “encontrou” Natanael logo depois (v. 45). Nos outros dois casos, o processo de “encontrar” implica em ir buscar determinada pessoa: André foi buscar seu irmão, e Filipe foi buscar seu amigo galileu. É bem provável que Jesus não se viu frente a frente com Filipe por acaso, mas conhecia-o e foi buscá-lo deliberadamente.

Tal ideia faz sentido se o discípulo anônimo do dia anterior for Filipe. Quando Jesus diz a Filipe: segue-me (v. 43), não é, portanto, um convite inicial para o discipulado, mas uma convocação para que acompanhasse a Jesus pela Galileia. A importância da nota entre parênteses de que Filipe, bem como André e Pedro, eram galileus de Betsaida, está no fato de demonstrar a adequação desse convite. Mas, que estariam fazendo esses galileus em Betânia, na margem leste do Jordão, com João Batista? Até Natanael é de Caná da Galileia (21:2). A Galileia e a região além Jordão estavam sob o domínio de Herodes Antipas, o tetrarca cujas aventuras extramaritais João Batista denunciara, e que finalmente pren­deu a João e mandou matá-lo (Mc 6:17-29; cf. Josefo, Antiquities 18.116-19). Obviamente João Batista atraía muita atenção na Galileia, centro de expectativa messiânica, não sendo de surpreender que o profeta houvesse arrebanhado um grupo de seguidores ali.

Agora os galileus vão para casa. Inicia-se a viagem para o casamento em Caná (2:1-11) e passar alguns dias em Cafamaum (2:12). De início apenas Filipe e Jesus são mencionados, mas a presunção no capítulo 2 é que todos os discípulos de Jesus (pelo menos quatro) estão presentes. O grupo se forma quando Filipe conta a seu companheiro conterrâneo, galileu, Natanael, a novidade estonteante: o Messias veio, é galileu, Jesus de Nazaré, filho de José (v. 45). A resposta de Natanael revela um tipo de regionalismo atravancador que se recusa a ver glória ou grandeza nas coisas familiares, ou de casa. Quando ele pergunta: Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? (v. 46), a questão levantada não é de rivalidade mesquinha entre cidadezinhas, mas da cegueira humana.

A atitude de Natanael é paralela à das pessoas na sinagoga de Cafarnaum (6:42) e de Nazaré (Mc 6:1-6; cf. Lc 4:16-30). Visto que os antecedentes de Jesus são locais, e conhecidos localmente, ele não pode ser alguém especial. É certo que ele não pode ser aquele de quem Moisés escreveu, e a quem se referiram os profetas (v. 45). Foi como disseram alguns em Jerusalém, mais tarde: “nós sabemos de onde ele é, ao passo que quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde ele é” (7:27). Não se esperava, de modo muito particular, que o Messias viesse da Galileia (7:41-42). Conquanto o ceticismo de Natanael provavelmente se baseasse tanto em sentimentos quanto em doutrinas, o narrador fez dele o porta-voz desses preconceitos e tendências. Com certeza, quando o Evangelho estava sendo redigido, os judeus estariam dizendo a respeito dos cristãos (ou nazarenos): “de Nazaré! Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (cf. At 24:5). A conversão de Natanael, portanto, tipifica a conversão de qualquer judeu que vence tais preconceitos contra o cris­tianismo, e crê em Jesus. Declara Jesus que Natanael é um verdadeiro israelita, em quem não há nada falso (v. 47).

Jesus demonstra aqui, mais claramente ainda do que no momento em que deu novo nome a Simão, seu dom sobrenatural de discernir caracteres (cf. 2:25). Parece que o Senhor se refere ao patriarca Jacó, que praticou a mentira até o momento em que se encontrou com Deus, na pessoa do anjo, que lhe trocou o nome para “Israel” (Gn 32:28). Natanael é um israelita digno desse nome. Jesus não está elogiando a Natanael, que externa seu ceticismo (v. 46), mas de modo especial repete o que fez com Simão: olha o homem e vê, não quem ele é, mas quem ele será por transformação. Tampouco a resposta de Natanael (v. 48a) dá a entender que ele, de modo imodesto, se considera “um verdadeiro israelita”. Ele apenas expressa surpresa pelo fato de Jesus falar como se já se houvessem encontrado antes. A estranha alusão de Jesus ao fato de tê-lo visto debaixo da figueira (v. 48b) aciona uma tecla responsiva: é o sinal, para Natanael, de que Jesus possui conhecimento sobrenatural.

Só podemos especular a respeito do que Jesus quis dizer com debaixo da figueira. Estaria o Senhor referindo-se a algum incidente em Betânia, logo antes de Filipe trazer-lhe Natanael, ou a algo acontecido na Galileia, num passado mais distante? Por que a figueira teria tanto significado para Natanael? Visto não haver respostas para estas perguntas, é possível que a história tenha um significado simbólico. Se Natanael era um verda­deiro israelita, e representante do “Israel” a quem Jesus deverá mani­festar-se (cf. 1:31), a expressão de Jesus nos encaminha a Oséias 9:10. “Achei a Israel como uvas no deserto, vi a vossos pais como a fruta temporã da figueira no seu princípio”. O ponto crucial é que talvez Jesus tenha encontrado o novo Israel, da mesma forma como Deus, seu Pai, encontrara o antigo Israel. Noutra passagem, Jesus fala da alegria de a pessoa descobrir um tesouro escondido num campo, ou de vender tudo quanto possui, a fim de adquirir uma pérola magnífica (Mt 13:44- 46), ou de encontrar uma moeda perdida, ou uma ovelha extraviada (Lc 15:1-10). A imagem de Oséias sobre a descoberta de frutos em terras desérticas é bem adequada, de modo que se pudesse criar um simbolismo semelhante. Os discípulos de Jesus são, de fato, achados preciosos, dádivas do Pai (cf. 6:37; 17:6) mas, visto ser demasiado cedo, nessa altura do Evangelho, para revelações dessa magnitude, o pronun­ciamento do Senhor permanece como uma espécie de enigma.

Natanael, ao modo da mulher samaritana, logo depois, ouve as pala­vras de Jesus e as considera um pronunciamento de alguém “que me disse tudo o que tenho feito” (cf. 4:29). Entretanto, enquanto a mulher samaritana simplesmente levantou a possibilidade de Jesus ser o Messias, Natanael anunciou com toda ousadia, sem quaisquer questionamentos, que tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel (v. 49).

Ambos os títulos, virtualmente sinônimos neste contexto, constituem modos alternativos de afirmar-se que Jesus é o Messias (cf. vv. 41, 45). A designação do rei ungido de Israel, como filho de Deus, tem raízes no Salmo 2:6-7. O autor do Evangelho sabe que Jesus é o Filho de Deus num sentido mais profundo do que Natanael poderia ter entendido (cf. 1:14, 18); contudo, ele permite que Natanael (à semelhança de João Batista) fale em nome da comunidade cristã. As expressões de Natanael, Filho de Deus e Rei de Israel antecipam a esperança do autor do Evangelho de que todos os seus leitores venham a crer “que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e “crendo” tenham “vida em seu nome” (20:31). Dentro das limitações de Natanael, Rei de Israel (i.e., o Messias) define o que Filho de Deus significa, mas para o autor e seus leitores, Filho de Deus (i.e., o Filho eterno, divinal) define o que significa o “Messias” ou o Rei de Israel. O Evangelho de João é a história da coroação do Filho de Deus como Rei, de modo paradoxal, em sua morte (cf. 12:13, 15; 19:14, 19).

Natanael, logo de início, profetizou o fim; entretanto, a profissão de fé que ele fez não é adequada. Suas palavras são corretas, mas baseiam-se em alicerces insuficientes. Natanael creu porque se impressionou com o conhecimento sobrenatural de Jesus. Jesus lhe promete, e aos demais discípulos: coisas maiores do que esta verás (v. 50). Eles verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem (v. 51). A visão prometida assemelha-se à de Jacó que “sonhou: Eis que uma escada estava posta na terra, cujo topo chegava ao céu; e os anjos de Deus subiam e desciam por ela” (Gn 18:12). No lugar de Jacó está o Filho do homem, o próprio Jesus. A visão é de Natanael, mas os discípulos, à semelhança de João Batista por ocasião do batismo de Jesus (1:32-34), participarão dessa visão. Começarão a ver “a sua glória, a glória como do unigênito do Pai” (1:14).

Os acontecimentos dos últimos quatro dias estiveram-se encaminhan­do para este pronunciamento. Todos os variados títulos de Jesus — “Messias” (ou “Cristo”), “Cordeiro de Deus”, “Filho de Deus”, “Rei de Israel” — encontram sua explicação na autodesignação de Jesus — Filho do homem. Em todos os evangelhos, esta é a denominação mais distintiva, mais característica, que Jesus dá a si mesmo. A promessa da visão do Filho do homem nos faz lembrar a afirmação do Senhor, em Marcos 14:62, em pleno julgamento: “vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu” (cf. Mt 26:64). A diferença é que em nossa passagem o Filho do homem está na terra. Como Jacó, Jesus está embaixo, ao pé da escada, como recebedor da revelação divina, e foco dessa revelação ao mundo. Natanael e os demais discípulos verão a verdade, não na lonjura infinita dos céus, nem num futuro distante e tampouco no emaranhado doutrinário dos rabis, mas ali mesmo, diante de seus olhos, no próprio Jesus (cf. Rm 10:6-8). Natanael recebe a promessa de uma visão que haverá de vencer-lhe o desdém pelo familiar e pelo comum. Ele aprenderá o que significa: “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (1:14). A visão da glória (até mesmo a de Nazaré!) revive na estrofe seguinte do poema de Francis Thompson:

Chore (quando tão triste, que mais triste impossível),
Chore, que sobre tão grande perda
Há de refulgir a procissão da escada de Jacó
Estirada entre a rude cruz e o céu!

Permanecem as perguntas sobre quando e como as visões teriam ocorrido. Teriam Natanael e os demais verdadeiramente visto anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem? Houve uma promessa a João Batista, de uma visão do Espírito descendo, que se cumpriu no batismo de Jesus; quanto a esta promessa, porém, não vemos um evento comparável a que possamos relacioná-la. Não há uma ocasião definida em que os discípulos literalmente viram Jesus reencenando o sonho de Jacó, e tampouco houve um momento em que o sumo sacerdote judeu viu Jesus “assentado à direita do Todo-poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu” (Mc 14:62). Os anjos não exercem papéis de impor­tância no quarto Evangelho (cf. apenas 12:29; 20:12). Entretanto, anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem é a realidade de Jesus sentado ã mão direita de Deus, vindo outra vez à terra. É a mesma realidade testemunhada por João Batista, realidade que Cristo até mesmo em sua humanidade está unido aos céus, e usufrui perfeita comunhão com Deus, seu Pai (cf. 8:29; 11:41-42). Os discípulos “verão” essa realidade, não numa visão angelical particular, mas no ministério de Jesus como um todo, iniciando-se com o casamento de Caná.

Bibliografia J. R. Michaels

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