João
Batista repete seu testemunho sobre Jesus como o Cordeiro de Deus na presença de dois de seus discípulos (v. 36). É
assim que ele fez que Jesus “fosse manifestado a Israel”. Com efeito, ele entrega seus
próprios discípulos a Jesus. Um desses dois é André (v. 40), mas o outro
não é identificado.
A presunção largamente difundida é que esse segundo discípulo seja o próprio
autor do Evangelho, o “discípulo amado” mencionado cinco vezes na segunda
metade do Evangelho. Mas nem todos os discípulos anônimos têm que ser esse, o
“amado”. É mais provável que o segundo discípulo seja Filipe (cf. 1:43), que
aparece ao lado de André em duas outras ocasiões (6:5-9; 12:21-22) e que, à
semelhança de André, traz alguém a Jesus (1:43-51). Os dois discípulos nos
versículos 35-39 antecipam, assim, os versículos 40-42 e 43-51,
respectivamente: Jesus chama André e Filipe; André traz seu irmão Simão a
Jesus, enquanto Filipe traz Natanael.
A história
do chamado é classicamente
simples. Os dois discípulos
ouvem a proclamação de João e seguem a Jesus. O fato de que seguiram, entretanto,
conotando discipulado, não é o
fim da história, mas o começo. Jesus lhes pergunta o que estão procurando e
eles dizem que querem ver onde o Senhor mora. E assim fazem uma visita ao
domicílio de Jesus em Betânia, onde passam o dia com o Senhor. Interessado na
exatidão, o narrador acrescenta a qualificação de que na verdade passaram
apenas uma parte do dia com Jesus, porque já era quase a hora décima (quatro horas da tarde, v. 39) {hora décima: Os judeus contavam as horas começando pelas 6 da manhã.
Alguns têm argumentado que o Evangelho de João segue, ao invés, um sistema
romano-egípcio semelhante ao nosso, em que o dia se inicia à meia-noite. Isto
significaria que os dois discípulos se encontraram com Jesus às dez horas da
manhã. A contagem das horas se torna uma questão difícil na fixação da hora
exata em que Jesus morreu (cf. 19:14); contudo, a obrigação de provar que o autor não segue o sistema judeu,
comum, cabe aos que defendem a ideia do sistema romano-egípcio.}, e o dia acabava ao pôr-do-sol. O que mais importava não era quanto
tempo passaram juntos, mas o fato de terem estado com Jesus. Ele se tornou o
rabi deles (o mestre, v. 38; cf. 13:13). Discipulado, neste Evangelho, não significa apenas seguir
a Jesus mas permanecer com ele. De tempos em tempos Jesus ficaria com
seus discípulos, ou candidatos a discípulos, à parte, entre um e outro
confronto público com as autoridades de Jerusalém (e.g., 2:12; 3:22; 4:40; 6:3;
10:40-42; 11:54; 18:2). Antes de partir deste mundo, Jesus pede a seus
discípulos que “permaneçam” unidos a ele, permanecendo em seu amor e
obedecendo a seus mandamentos (15:1-10). O discipulado se inicia deixando a
vida pregressa a fim de “seguir” Jesus (cf. Mc 1:16-20) e completa-se ao
“seguir” o Senhor até à morte de mártir, ou “permanecendo” fiel a ele numa
vida de obediência amorosa (cf. Jo 21:19-23).
Se os
dois discípulos passaram o resto do Terceiro Dia com Jesus, os eventos dos
versículos 40-42 devem ter ocorrido no Quarto Dia. Entretanto, o dia seguinte
só é anunciado no v. 43. Por quê? Parece que o narrador não quer que o chamado
de Simão Pedro (versículos 40-42) fique à parte do relato mais extenso do
chamado de Natanael, em que se concentra o principal interesse. O chamado de
Simão Pedro é parte da tradição do autor, que não deseja deixá-lo fora mas, a
bem da verdade, não há um dia especial devotado à vocação de Simão nessa
sequência de seis dias. O evento é um apêndice ao Terceiro Dia, incluído com o
objetivo de completar a narrativa e preparar as pessoas para os eventos do
Quarto Dia. André {A primeira coisa que André fez. A
palavra grega éproton, “primeira”, palavra usada como
advérbio. Alguns manuscritos antigos trazem protos (dando como tradução:
“André foi o primeiro”). Outros trazem proi (“no dia seguinte, pela manhã”).
Esta última alternativa, embora incorreta, produz um quadro exato da sequência
dos acontecimentos.} encontra Simão e lhe diz: Achamos o
Messias (v. 41); Filipe encontra Natanael e lhe diz: Achamos aquele de quem
Moisés escreveu na lei (1:45); Jesus diz que Simão é pedra (Cefas ou Pedro, v.
42), e Natanael, um verdadeiro israelita (1:47). Mas os paralelismos param
aqui. A entrevista de Jesus com Simão Pedro encerra-se tão abruptamente como
se iniciou, enquanto Natanael prossegue, professando sua fé e recebendo uma
promessa em prol de todos os discípulos (1:45-51).
Se
dispuséssemos de apenas esta parte introdutória da narrativa, chegaríamos à
conclusão de que Simão Pedro foi um figurante de menor importância, no
Evangelho de João, e que Natanael teve grande projeção, mas, no decorrer dos
acontecimentos, o inverso é que é verdadeiro. A profissão de fé de Pedro não é
omitida, apenas adiada (6:68-69); o leitor aprenderá mais a respeito dele do
que de qualquer outro discípulo (ver 13:36-38; 18:15-18,25-27; 21:15-19). Pouca
importância é dada ao novo nome de Simão. Não existe um texto equivalente ao de
Mateus, em que há uma promessa a Pedro: “sobre esta pedra edificarei a minha
igreja” (Mt 16:18). Embora esse discípulo seja chamado comumente de “Pedro” ou
“Simão Pedro”, Jesus ainda o chama, às vezes, de “Simão, filho de João” já no
fim, como em 21:15-17. A tradição de Pedro, a Rocha, é preservada e reafirmada;
contudo, para o autor do Evangelho, o mais importante é Simão, o Pastor (outra
vez cf. 21:15-17).
A
“vocação” de Filipe é diferente da vocação descrita nos versículos 35-39.
Jesus “encontrou” Filipe (v. 43) da mesma maneira que André “achou” seu irmão
Simão (v. 41), e como Filipe “encontrou” Natanael logo depois (v. 45). Nos
outros dois casos, o processo de “encontrar” implica em ir buscar determinada
pessoa: André foi buscar seu irmão, e Filipe foi buscar seu amigo galileu. É
bem provável que Jesus não se viu frente a frente com Filipe por acaso, mas
conhecia-o e foi buscá-lo deliberadamente.
Tal
ideia faz sentido se o discípulo anônimo do dia anterior for Filipe. Quando
Jesus diz a Filipe: segue-me (v. 43), não é, portanto, um convite
inicial para o discipulado, mas uma convocação para que acompanhasse a Jesus
pela Galileia. A importância da nota entre parênteses de que Filipe, bem como
André e Pedro, eram galileus de Betsaida, está no fato de demonstrar a
adequação desse convite. Mas, que estariam fazendo esses galileus em Betânia,
na margem leste do Jordão, com João Batista? Até Natanael é de Caná da Galileia
(21:2). A Galileia e a região além Jordão estavam sob o domínio de Herodes
Antipas, o tetrarca cujas aventuras extramaritais João Batista denunciara, e
que finalmente prendeu a João e mandou matá-lo (Mc 6:17-29; cf. Josefo, Antiquities
18.116-19). Obviamente João Batista atraía muita atenção na Galileia,
centro de expectativa messiânica, não sendo de surpreender que o profeta
houvesse arrebanhado um grupo de seguidores ali.
Agora
os galileus vão para casa. Inicia-se a viagem para o casamento em Caná (2:1-11)
e passar alguns dias em Cafamaum (2:12). De início apenas Filipe e Jesus são
mencionados, mas a presunção no capítulo 2 é que todos os discípulos de Jesus
(pelo menos quatro) estão presentes. O grupo se forma quando Filipe conta a seu
companheiro conterrâneo, galileu, Natanael, a novidade estonteante: o Messias
veio, é galileu, Jesus de Nazaré, filho de José (v. 45). A resposta de Natanael
revela um tipo de regionalismo atravancador que se recusa a ver glória ou
grandeza nas coisas familiares, ou de casa. Quando ele pergunta: Pode vir
alguma coisa boa de Nazaré? (v. 46), a questão levantada não é de rivalidade
mesquinha entre cidadezinhas, mas da cegueira humana.
A
atitude de Natanael é paralela à das pessoas na sinagoga de Cafarnaum (6:42) e
de Nazaré (Mc 6:1-6; cf. Lc 4:16-30). Visto que os antecedentes de Jesus são
locais, e conhecidos localmente, ele não pode ser alguém especial. É certo que
ele não pode ser aquele de quem Moisés escreveu, e a quem se referiram os
profetas (v. 45). Foi como disseram
alguns em Jerusalém, mais tarde: “nós sabemos de onde ele é, ao passo que
quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde ele é” (7:27). Não se esperava, de modo muito
particular, que o Messias viesse da Galileia (7:41-42). Conquanto o ceticismo
de Natanael provavelmente se baseasse
tanto em sentimentos quanto em doutrinas, o narrador fez dele o porta-voz
desses preconceitos e tendências. Com certeza, quando o Evangelho estava sendo
redigido, os judeus estariam dizendo a respeito dos cristãos (ou nazarenos):
“de Nazaré! Pode vir alguma coisa boa
de Nazaré?” (cf. At 24:5). A conversão de Natanael, portanto, tipifica a
conversão de qualquer judeu que vence tais preconceitos contra o cristianismo,
e crê em Jesus. Declara Jesus que Natanael é um verdadeiro israelita, em quem não há nada falso (v. 47).
Jesus
demonstra aqui, mais claramente ainda do que no momento em que deu novo nome a
Simão, seu dom sobrenatural de discernir caracteres (cf. 2:25). Parece que o
Senhor se refere ao patriarca Jacó, que praticou a mentira até o momento em que
se encontrou com Deus, na pessoa do anjo, que lhe trocou o nome para “Israel”
(Gn 32:28). Natanael é um israelita digno
desse nome. Jesus não está elogiando a Natanael, que externa seu ceticismo (v.
46), mas de modo especial repete o que fez com Simão: olha o homem e vê, não
quem ele é, mas quem ele será por transformação. Tampouco a resposta de
Natanael (v. 48a) dá a entender que ele, de modo imodesto, se considera “um
verdadeiro israelita”. Ele apenas expressa surpresa pelo fato de Jesus falar
como se já se houvessem encontrado antes. A estranha alusão de Jesus ao fato de
tê-lo visto debaixo da figueira (v.
48b) aciona uma tecla responsiva: é o sinal, para Natanael, de que Jesus possui
conhecimento sobrenatural.
Só
podemos especular a respeito do que Jesus quis dizer com debaixo da figueira. Estaria o Senhor
referindo-se a algum incidente em Betânia, logo antes de Filipe trazer-lhe Natanael,
ou a algo acontecido na Galileia, num passado mais distante? Por que a figueira
teria tanto significado para Natanael? Visto não haver respostas para estas
perguntas, é possível que a história tenha um significado simbólico. Se
Natanael era um verdadeiro israelita, e
representante do “Israel” a quem Jesus deverá manifestar-se (cf. 1:31), a
expressão de Jesus nos encaminha a Oséias 9:10. “Achei a Israel como uvas no
deserto, vi a vossos pais como a fruta temporã da figueira no seu princípio”. O
ponto crucial é que talvez Jesus tenha encontrado o novo Israel, da mesma forma
como Deus, seu Pai, encontrara o antigo Israel. Noutra passagem, Jesus fala da alegria de a
pessoa descobrir um tesouro escondido num campo, ou de vender tudo quanto
possui, a fim de adquirir uma pérola magnífica (Mt 13:44- 46), ou de encontrar
uma moeda perdida, ou uma ovelha extraviada (Lc 15:1-10). A imagem de Oséias
sobre a descoberta de frutos em terras desérticas é bem adequada, de modo que
se pudesse criar um simbolismo semelhante. Os discípulos de Jesus são, de fato,
achados preciosos, dádivas do Pai (cf. 6:37; 17:6) mas, visto ser demasiado
cedo, nessa altura do Evangelho, para revelações dessa magnitude, o pronunciamento
do Senhor permanece como uma espécie de enigma.
Natanael,
ao modo da mulher samaritana, logo depois, ouve as palavras de Jesus e as
considera um pronunciamento de alguém “que me disse tudo o que tenho feito”
(cf. 4:29). Entretanto, enquanto a mulher samaritana simplesmente levantou a
possibilidade de Jesus ser o Messias, Natanael anunciou com toda ousadia, sem
quaisquer questionamentos, que tu és o
Filho de Deus, tu és o Rei de
Israel (v. 49).
Ambos
os títulos, virtualmente sinônimos neste contexto, constituem modos
alternativos de afirmar-se que Jesus é o Messias (cf. vv. 41, 45). A designação
do rei ungido de Israel, como filho de Deus, tem raízes no Salmo 2:6-7. O autor
do Evangelho sabe que Jesus é o Filho de Deus num sentido mais profundo do que
Natanael poderia ter entendido (cf. 1:14, 18); contudo, ele permite que
Natanael (à semelhança de João Batista) fale em nome da comunidade cristã. As
expressões de Natanael, Filho de Deus e
Rei de Israel antecipam a
esperança do autor do Evangelho de que todos os seus leitores venham a crer
“que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e “crendo” tenham “vida em seu nome”
(20:31). Dentro das limitações de Natanael, Rei de Israel (i.e., o Messias) define o que Filho de Deus significa, mas para o
autor e seus leitores, Filho de Deus (i.e.,
o Filho eterno, divinal) define o que significa o “Messias” ou o Rei de Israel. O Evangelho de João é a
história da coroação do Filho de Deus como Rei, de modo paradoxal, em sua morte
(cf. 12:13, 15; 19:14, 19).
Natanael,
logo de início, profetizou o fim; entretanto, a profissão de fé que ele fez não
é adequada. Suas palavras são corretas, mas baseiam-se em alicerces insuficientes. Natanael creu porque se impressionou
com o conhecimento sobrenatural de Jesus. Jesus lhe promete, e aos demais
discípulos: coisas maiores do que esta
verás (v. 50). Eles verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o
Filho do homem (v. 51). A visão prometida assemelha-se à de Jacó que “sonhou: Eis que
uma escada estava posta na terra, cujo topo chegava ao céu; e os anjos de Deus
subiam e desciam por ela” (Gn 18:12). No lugar de Jacó está o Filho do homem, o próprio Jesus. A
visão é de Natanael, mas os discípulos, à semelhança de João Batista por
ocasião do batismo de Jesus (1:32-34), participarão dessa visão. Começarão a
ver “a sua glória, a glória como do unigênito do Pai” (1:14).
Os
acontecimentos dos últimos quatro dias estiveram-se encaminhando para este
pronunciamento. Todos os variados títulos de Jesus — “Messias” (ou “Cristo”),
“Cordeiro de Deus”, “Filho de Deus”, “Rei de Israel” — encontram sua explicação
na autodesignação de Jesus — Filho do
homem. Em todos os evangelhos, esta é a denominação mais distintiva,
mais característica, que Jesus dá a si mesmo. A promessa da visão do Filho do
homem nos faz lembrar a afirmação do Senhor, em Marcos 14:62, em pleno
julgamento: “vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso, e
vindo sobre as nuvens do céu” (cf. Mt 26:64). A diferença é que em nossa
passagem o Filho do homem está na terra. Como Jacó, Jesus está embaixo,
ao pé da escada, como recebedor da revelação divina, e foco dessa revelação ao mundo. Natanael e os demais discípulos
verão a verdade, não na lonjura infinita dos céus, nem num futuro distante e
tampouco no emaranhado doutrinário dos rabis, mas ali mesmo, diante de seus
olhos, no próprio Jesus (cf. Rm 10:6-8). Natanael recebe a promessa de uma
visão que haverá de vencer-lhe o desdém pelo familiar e pelo comum. Ele
aprenderá o que significa: “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (1:14).
A visão da glória (até mesmo a de Nazaré!) revive na estrofe seguinte do poema
de Francis Thompson:
Chore (quando tão triste, que mais triste impossível),
Chore, que sobre tão grande perda
Há de refulgir a procissão da escada de Jacó
Estirada entre a rude cruz e o céu!
Permanecem
as perguntas sobre quando e como as visões teriam ocorrido. Teriam Natanael e
os demais verdadeiramente visto anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho
do homem? Houve uma promessa a João Batista, de uma visão do Espírito descendo,
que se cumpriu no batismo de Jesus; quanto a esta promessa, porém, não vemos um
evento comparável a que possamos relacioná-la. Não há uma ocasião definida em
que os discípulos literalmente viram Jesus reencenando o sonho de Jacó,
e tampouco houve um momento em que o sumo sacerdote judeu viu Jesus
“assentado à direita do Todo-poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu” (Mc
14:62). Os anjos não exercem papéis de importância no quarto Evangelho (cf.
apenas 12:29; 20:12). Entretanto, anjos
de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem é a realidade de Jesus
sentado ã mão direita de Deus, vindo outra vez à terra. É a mesma realidade
testemunhada por João Batista, realidade que Cristo até mesmo em sua
humanidade está unido aos céus, e usufrui perfeita comunhão com Deus, seu
Pai (cf. 8:29; 11:41-42). Os discípulos “verão” essa realidade, não numa visão
angelical particular, mas no ministério de Jesus como um todo, iniciando-se com
o casamento de Caná.
Bibliografia
J. R. Michaels
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