Vontade O
que move o ser humano
TEXTO ÁUREO
“Digo, porém: Andai em Espírito e não
cumprireis a concupiscência da carne.” (Gl 5.16).
ENTENDA O TEXTO ÁUREO
👉 A carta aos
Gálatas foi escrita por Paulo para corrigir um grave problema doutrinário: os
cristãos da Galácia estavam sendo seduzidos por falsos mestres judaizantes, que
tentavam combinar a fé em Cristo com a observância da Lei de Moisés.
O apóstolo demonstra que a salvação e a santificação são frutos da graça
mediante a fé, e não do esforço humano. O capítulo 5 é o ponto alto dessa
argumentação: Paulo contrasta a liberdade no Espírito com a
escravidão da carne. Assim, o versículo 16 introduz o princípio espiritual
que governa toda a vida cristã: andar no Espírito é o único meio eficaz
de vencer os impulsos da carne.
Digo, porém (Λέγω δέ, légō de) a expressão introduz uma
transição enfática. Paulo muda o tom de exortação para aplicação prática,
mostrando o caminho para a vida espiritual autêntica.
Andai (περιπατεῖτε, peripateíte) verbo no presente imperativo ativo, indicando ação contínua e
habitual. Andar, aqui, não é um ato isolado, mas um estilo de vida,
uma caminhada diária orientada pelo Espírito Santo.
Em Espírito (πνεύματι, pneumati) o dativo instrumental indica meio
ou esfera. Não se trata apenas de “andar com o Espírito”, mas “andar
pelo poder e sob a direção do Espírito”. É viver segundo os princípios,
valores e impulsos que o Espírito produz no coração regenerado (cf. Rm 8.4-14).
E não cumprireis (καὶ οὐ μὴ τελέσητε, kai ou mē telēsēte) dupla negação enfática no
grego, expressando certeza absoluta: “de modo algum satisfareis” ou
“jamais realizareis” as vontades da carne. Paulo assegura que a vitória
sobre o pecado não vem do esforço humano, mas da sujeição contínua ao Espírito.
a concupiscência da carne
(ἐπιθυμίαν σαρκὸς, epithumían sarkós)
literalmente, “os desejos da carne”.
A palavra epithumía
refere-se a desejos intensos, paixões dominadoras, nem sempre
pecaminosas em si, mas corrompidas quando direcionadas fora da vontade de Deus.
Já sarx (carne) aqui não
designa o corpo físico, mas a natureza humana caída, inclinada ao
egoísmo, ao orgulho e à desobediência (cf.
Rm 7.18; Cl 3.5).
O versículo apresenta um princípio de causalidade espiritual
invertida: Não é evitando a carne
que andamos no Espírito; é andando no Espírito que vencemos a carne. Paulo
não propõe repressão moral, mas transformação espiritual. O domínio da
carne é quebrado não pela força da vontade humana, mas pela presença ativa do
Espírito Santo dentro do crente. O verbo “andar” indica cooperação contínua, uma
disciplina de comunhão e dependência (cf.
Jo 15.5).
Aplicação Teológica
Viver segundo o Espírito é submeter cada pensamento,
decisão e desejo à direção de Deus.
Andar em Espírito não é misticismo, mas
obediência prática: escolher o que o Espírito aprova e rejeitar o que Ele
reprova.
A carne representa todo sistema de vida autônomo,
autocentrado e resistente ao governo de Cristo.
A vitória sobre a carne não é conquista instantânea,
mas resultado de uma caminhada diária de rendição.
O apóstolo Paulo reforça esse princípio em Romanos 8.13: “se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo,
vivereis.” O mesmo Espírito que regenera também sustenta a vontade do
crente, capacitando-o a dizer “não” ao pecado e “sim” à santidade.
Gálatas 5.16 é, portanto, uma chave de
libertação espiritual: Quem anda no Espírito não vive submisso à carne,
porque o Espírito Santo torna-se o novo centro de comando da vontade humana. A
verdadeira liberdade cristã não é fazer o que se quer, mas querer o que o
Espírito quer.
A carne grita por satisfação imediata; o Espírito conduz à obediência
que gera vida. O conflito permanece, mas o domínio muda de mãos. E todo aquele
que anda em Espírito descobre, na prática, que a vontade de Deus é “boa,
agradável e perfeita” (Rm 12.2).
VERDADE PRÁTICA
Guiada
por Deus, a vontade é uma bênção extraordinária, vital para a existência
humana.
ENTENDA A VERDADE PRÁTICA
A vontade humana encontra sua verdadeira liberdade somente quando é
subjugada ao Espírito Santo; pois andar em Espírito não é reprimir a carne pela
força própria, mas permitir que Deus reine sobre nossos desejos, transformando
a obediência em prazer e a santidade em caminho natural do coração.
LEITURA BÍBLICA = Gálatas
5.16-21; Tiago 1.14,15; 4.13-17.
Gálatas 5.16-21
16. Digo, porém: Andai em Espírito e não cumprireis
a concupiscência da carne.
O apóstolo Paulo usa o verbo
peripateite (andar, caminhar), indicando uma vida conduzida continuamente pelo
Espírito Santo. Não é um ato pontual, mas uma jornada diária de dependência.
MacArthur destaca que a vitória
sobre a carne não se dá por esforço moral, mas pelo controle do Espírito.
BEP (Pentecostal) lembra que
andar em Espírito é viver sob o domínio e o poder do Espírito Santo, o que
inclui resistência ativa ao pecado.
Plenitude sublinha o aspecto
relacional: o Espírito não é uma força, mas uma Pessoa que guia e transforma.
Shedd observa que “andar”
implica progresso espiritual, quem anda no Espírito não fica estagnado na fé.
O crente
que caminha guiado pelo Espírito não apenas evita o pecado, ele encontra prazer
em obedecer.
17. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o
Espírito, contra a carne; e estes opõem-se um ao outro; para que não façais o
que quereis.
Aqui Paulo expõe o conflito
interior: a carne (sarx) representa a natureza humana decaída; o Espírito, a
nova vida em Cristo.
MacArthur explica que esse
conflito é evidência da regeneração, o descrente não sente essa luta.
BEP lembra que o Espírito Santo
fornece força para dominar as paixões da carne, e que essa guerra dura até a
glorificação.
Plenitude ressalta que não se
trata de dualismo (Espírito x corpo), mas de moral e domínio: quem reina?
Shedd acrescenta: a carne deseja
independência de Deus; o Espírito busca dependência total.
O cristão maduro não nega o
conflito, mas aprende a vencê-lo pela submissão diária ao Espírito.
18. Mas, se sois guiados pelo
Espírito, não estais debaixo da lei.
Ser guiado pelo Espírito é viver
em liberdade da lei como sistema de salvação.
MacArthur: o Espírito substitui
a lei como princípio de conduta moral, pois Ele escreve a vontade de Deus no
coração.
BEP: o Espírito não abole a lei
moral, mas dá poder para cumpri-la.
Plenitude: a “guiança” é
relacional, não mecânica, implica sensibilidade espiritual.
Shedd: quem vive debaixo da
graça obedece por amor, não por obrigação. O Espírito
liberta o cristão da condenação legalista e o conduz à obediência amorosa.
19. Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: prostituição,
impureza, lascívia,
Paulo apresenta uma lista de quase
quinze pecados, divididos em três grupos:
Imorais (sexuais): prostituição,
impureza, lascívia.
Religiosos: idolatria,
feitiçarias.
Sociais: inimizades, ciúmes,
iras, facções, invejas, homicídios, bebedices, etc.
MacArthur: chama atenção para a
palavra “obras” (erga), que contrasta com “fruto” (karpos) no v. 22, o pecado é
produto do esforço humano; o fruto é resultado da graça.
BEP: adverte que essas práticas,
se persistentes, excluem o crente do Reino (v. 21).
Plenitude: observa que Paulo usa
o tempo presente para indicar continuidade, não é queda ocasional, mas estilo
de vida.
Shedd: ressalta que a carne não
precisa ser ensinada a pecar; é sua natureza.
As “obras da carne” são sintomas
de uma alma que abandonou o domínio do Espírito.
20. idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias,
emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias,
21. invejas, homicídios, bebedices, glutonarias e
coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos
disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o Reino de Deus.
Tiago 1.14,15
14. Mas cada
um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência.
Tiago desloca a origem da
tentação do exterior para o interior.
MacArthur: destaca o verbo
“atraído” (exelkomenos) e “seduzido” (deleazomenos), termos da pesca, a isca é
o desejo.
BEP: enfatiza a responsabilidade
pessoal; o diabo pode tentar, mas não forçar.
Plenitude: nota que a tentação
revela o que já habita no coração.
Shedd: compara a tentação à
concepção: há uma união entre desejo e ocasião.
Satanás oferece a isca, mas quem
morde é o coração que não está cheio de Deus.
15. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à
luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.
O pecado nasce de um processo
interno, do desejo não controlado à ação.
MacArthur: o pecado amadurecido
gera morte espiritual, separação de Deus.
BEP: adverte que a queda começa
no pensamento, antes do ato.
Plenitude: mostra o ciclo:
desejo→ engano → ação → morte.
Shedd: reforça que o crente precisa
cortar o mal “na concepção”, antes de dar frutos.
Todo pecado começa no ventre da
vontade, por isso, a santidade nasce da vigilância.
Tiago 4.13-17.
13. Eia,
agora, vós que dizeis: Hoje ou amanhã, iremos a tal cidade, e lá passaremos um
ano, e contrataremos, e ganharemos.
Tiago repreende a
autossuficiência de quem planeja sem Deus.
MacArthur: chama isso de ateísmo
prático, viver como se Deus não existisse.
BEP: ensina
que o verdadeiro cristão submete seus planos à direção do Espírito.
Plenitude: destaca o contraste
entre o tempo humano (“hoje ou amanhã”) e o tempo divino (“se o Senhor
quiser”).
Shedd: lembra que a vida é
neblina (atmis), breve e frágil.
Planejar não é pecado; pecar é
planejar sem Deus.
14. Digo-vos que não sabeis o que acontecerá
amanhã. Porque que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco e depois
se desvanece.
15. Em lugar do que devíeis dizer: Se o Senhor
quiser, e se vivermos, faremos isto ou aquilo.
Uma expressão de dependência e
humildade espiritual.
MacArthur: esse “se” não é
ceticismo, mas fé madura.
BEP: é o reconhecimento de que o
Espírito tem a palavra final.
Plenitude: o cristão deve
planejar com oração e submissão.
Shedd: o erro está em presumir,
não em planejar.
A verdadeira sabedoria é alinhar
a vontade humana à soberania divina.
16. Mas, agora, vos gloriais em vossas presunções; toda glória tal como
esta é maligna.
Tiago encerra com uma
advertência: a omissão também é pecado.
MacArthur: o pecado não é apenas
transgressão, mas negligência da obediência.
BEP: o Espírito Santo convence o
crente não só do erro cometido, mas do bem omitido.
Plenitude: o orgulho é raiz do
pecado de omissão.
Shedd: o pecado de omissão é o
mais sutil, revela um coração frio.
A vontade de Deus não se cumpre
apenas quando evitamos o mal, mas quando praticamos o bem.
17. Aquele, pois, que sabe fazer o bem e o não
faz comete pecado.
A vontade humana, quando
entregue ao Espírito Santo, torna-se instrumento de santificação; quando guiada
pela carne, produz destruição. O Espírito não anula nossa vontade, Ele a
redime.
Por isso, o segredo da vida
cristã está em andar no Espírito (Gl
5.16), vigiar os desejos (Tg
1.14-15) e submeter os planos (Tg
4.13-17). A carne quer independência; o Espírito quer comunhão. A vontade
humana é o campo de batalha, e o trono pertence a quem a dominar.
INTRODUÇÃO
Desde o Éden, o ser humano vive um conflito silencioso entre o que sabe
que deve fazer e o que, na verdade, deseja fazer. Em cada escolha, por menor
que pareça, algo dentro de nós trava uma batalha: razão, emoção e vontade
disputam o controle da alma. A pergunta central desta lição nasce exatamente
dessa tensão: o que realmente move o ser humano: a vontade própria ou a
vontade de Deus?
Nas lições anteriores, estudamos o intelecto e a sensibilidade, a mente
que pensa e o coração que sente. Agora, chegamos à ponte que liga pensamento e
sentimento à ação: a vontade. É ela quem decide o rumo final de cada
pensamento e sentimento. O intelecto pode compreender o que é certo, e a
sensibilidade pode desejar o que é bom, mas sem a vontade, nada se
concretiza. A vontade é o ponto de virada entre o que imaginamos e o que
nos tornamos.
Contudo, essa faculdade, tão essencial quanto perigosa, foi
profundamente afetada pela Queda.
O pecado corrompeu nossos desejos e nos inclinou a buscar prazer, poder
e autonomia à margem de Deus. Desde então, o ser humano tem sido arrastado,
muitas vezes conscientemente, por vontades que o conduzem à escravidão
interior. Eis o problema: nossa vontade, sem direção divina, torna-se
uma força destrutiva, capaz de nos afastar da vida abundante que o Espírito
Santo deseja gerar em nós.
Esta lição parte dessa realidade para afirmar uma verdade libertadora: a
vontade humana, quando guiada por Deus, é restaurada como instrumento de bênção
e propósito. O Espírito Santo não anula nossa vontade, Ele a redime. Onde
antes havia impulsos desordenados, nasce o poder de escolher o bem, resistir ao
mal e viver em obediência. Nos próximos tópicos, veremos como pensamentos e
desejos moldam nossas decisões; como a carne tenta escravizar a vontade; e como
a graça, em Cristo, nos capacita a viver a liberdade dos que “andam no
Espírito e não cumprem a concupiscência da carne” (Gl 5.16). Porque, no fim, o que realmente move o ser humano revela
quem governa o seu interior.
I. VONTADE: MOTIVAÇÃO E AÇÃO
1. Conceito de vontade. Desde a
aurora da humanidade, o que verdadeiramente define nosso ser não é o que
pensamos nem o que sentimos; é o que decidimos à luz de ambos. A vontade é esse
poder latente que conecta mente e emoção ao mundo da ação. No original grego,
duas palavras nos ajudam a captar sua dinâmica: theléma (θέλημα)
expressa desejo, inclinação ou vontade voluntária. Já boulé/ boulema
(βουλή/βούλημα) designa propósito deliberado, resolução ou plano estabelecido.
Na Escritura, ao mesmo tempo em que vemos o homem chamado a “fazer a vontade de
Deus” (Mt 7.21), também vemos o
conflito interno entre uma vontade caída e o Espírito que renova (Gl 5.16-21).
Assim, quando falamos em vontade, estamos pontuando o lugar onde o
livre-arbítrio humano encontra o chamado divino; onde o desejo profundo
impulsiona a escolha; onde a alma decide agir. Na psicologia moderna, esse
fenômeno é tratado sob o conceito de volition
ou volição: processo cognitivo pelo qual o indivíduo decide e se compromete com
um curso de ação, diferenciado da simples motivação ou emoção. Tal abordagem
confirma que a vontade não é mera intenção nem mero impulso, mas decisão
consciente que gera realização, “sem desejo ou vontade não há motivação
e, via de consequência, ação”.
A vontade humana foi ferida pela Queda, ela não opera mais como
originalmente planejada por Deus. O que antes era livre adesão à vontade do Pai
tornou-se uma arena de conflitos: a mente sabe, a sensibilidade sente, mas a
vontade vacila ou se rende ao desejo da carne. A consequência é uma vida de pulsões
desordenadas, escolhas maquiadas de liberdade mas escravizadas ao pecado. A
vontade humana é, por natureza, uma faculdade neutra e essencial, concedida por
Deus para desejar, escolher e agir, mas ferida e distorcida pelo pecado. Em
Cristo, essa vontade não é anulada, mas redimida: quando submetida ao Espírito
Santo, torna-se instrumento de obediência, de liberdade genuína e de ação
significativa. Assim, a vontade orientada por Deus revela o que somos, e o que
podemos tornar-nos.
2. Do pensamento à ação. Toda ação nasce de um pensamento. Mas nem todo
pensamento se transforma em ação. Há ideias que passam pela mente como sombras,
sem tocar o coração. Outras, porém, encontram morada na emoção, inflamam o
desejo e, finalmente, movem a vontade. É nesse processo invisível (pensar,
sentir, desejar e agir) que se revela a estrutura espiritual do ser humano. Na
Escritura, esse movimento é antigo como o Éden. Eva não caiu apenas porque viu
o fruto, mas porque refletiu sobre ele.
O verbo hebraico usado em Gênesis
3.6, ra’ah (ver,
contemplar), implica olhar com discernimento e prazer. Ela não apenas percebeu
o fruto; interpretou-o. A tentação começou no campo da mente, quando o
pensamento passou a dialogar com o engano. O inimigo sabia: antes de tocar o
fruto, era preciso tocar a vontade. Tiago descreve o mesmo princípio
espiritual: “Cada um é tentado pela
sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, havendo
concebido, dá à luz o pecado” (Tg
1.14-15).
O verbo grego deleazomenos
(seduzir) era usado na pesca; significa ser fisgado por algo que brilha. Assim
como o peixe não percebe o anzol de imediato, o coração humano é fisgado pelo
desejo que nasce de um pensamento cultivado. O pecado não começa nas mãos, mas
na imaginação. A psicologia moderna chama esse processo de volição: o ato de decidir e agir
conscientemente. A teologia, porém, o compreende como o ponto de encontro entre
alma e espírito, onde a liberdade humana se inclina ou à carne, ou ao Espírito (Gl 5.16-17).
Silas Queiroz, em Corpo, Alma e
Espírito, ensina que a vontade é “o eixo da alma racional, o ponto em
que o homem escolhe entre obedecer ou resistir ao Espírito”. Por isso, quando a
mente é renovada pela Palavra (Rm 12.2),
a vontade é reorientada pela graça. Observe: Eva pensou, sentiu, desejou,
agiu e caiu. Cristo, no Getsêmani, pensou, sentiu, desejou,
orou e venceu (Lc 22.42).
A diferença não estava na ausência de emoção, mas na submissão da
vontade. No grego, Jesus usa thelō
“quero” para afirmar Sua própria vontade, mas logo a submete: “Não se faça a
minha vontade (thelēma), mas a
tua” (Lc 22.42). A vitória
espiritual nasce quando a vontade humana é rendida à divina. Nos bastidores da
alma, o Espírito Santo trava uma batalha silenciosa: quem dominará sua vontade
determinará o curso de sua vida.
Gordon Fee comenta que o Espírito não apenas capacita, mas reconfigura
o querer do crente. A obediência, portanto, não é esforço mecânico, mas
fruto de um coração transformado (Fp 2.13).
Quando o Espírito governa o pensamento e o desejo, Ele converte impulsos
em propósito, e tentações em testemunho. Por isso, cada discípulo de Cristo
deve perguntar-se: quem está conduzindo minha vontade hoje, o Espírito ou a
carne? É aqui que a teologia se torna prática. Não basta conhecer a verdade; é
preciso desejá-la.
Como ensinava Antônio Gilberto, “a verdadeira santificação começa
quando o crente deseja de todo o coração, agradar ao Senhor”. A vontade,
portanto, é o altar invisível onde a fé se transforma em obediência. Tudo o que
pensamos, sentimos e decidimos revela a quem realmente pertencemos.
3. Fraqueza de vontade. A história da queda no Éden não começou com
ignorância, mas com escolha. Adão sabia exatamente o que Deus havia ordenado.
Seu entendimento não foi obscurecido. Ele pecou não por engano, mas por
fraqueza de vontade.
O texto de Gênesis 3.6 revela
algo profundo sobre a natureza humana: a mente pode compreender a verdade, mas
se a vontade se curva ao desejo, a razão perde sua força. É nesse abismo entre
saber e querer que a carne triunfa sobre o Espírito. No hebraico, a palavra
nephesh (נֶפֶשׁ), frequentemente traduzida como “alma”, inclui o centro dos
afetos, desejos e decisões, é ali que a vontade habita. No Novo Testamento, o
termo grego thelēma (θέλημα) descreve tanto o ato de querer quanto o propósito
moral de agir. Em Adão, o thelēma humano foi corrompido: sua vontade se desviou
da obediência para o egoísmo. Ele preferiu agradar a si e à esposa, e não ao
Criador (Rm 5.12).
Essa escolha inaugurou o conflito que todos nós sentimos: a tensão entre
o que sabemos que é certo e o que desejamos fazer (Gl 5.17). A psicologia moderna reconhece essa dualidade. A teoria
da dissonância cognitiva, proposta por Leon Festinger, explica que o ser humano
sofre quando suas ações contradizem suas crenças. Mas a Bíblia já denunciava
essa tensão há milênios. Paulo descreve o mesmo dilema em Romanos 7.19: “Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal
que não quero fazer, esse eu continuo fazendo.”
A vontade, quando separada do poder do Espírito, torna-se escrava dos
impulsos da carne. Jesus, no Getsêmani, mostrou o caminho da restauração da
vontade: “Não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22.42). Aqui, o thelēma humano se submete completamente ao
thelēma divino. A vitória de Cristo na cruz começou na entrega da vontade no
jardim. Somente o Espírito Santo pode operar essa transformação em nós, pois
Ele molda nossos desejos para que a vontade de Deus se torne o nosso prazer (Fp 2.13).
A fraqueza de vontade é, portanto, mais do que um defeito moral, é o
sintoma de uma alma desconectada do seu propósito original. O homem natural
deseja o que destrói, mesmo sabendo que o fim é morte (Rm 1.32).
A busca do prazer pelo prazer, o hedonismo, é a expressão cultural desse
rompimento interior. A vontade sem o Espírito é uma força autodestrutiva; a
vontade guiada por Deus é libertação e vida (Jo 8.36).
Por isso, o discipulado cristão é o campo de treinamento da vontade.
Cada escolha diária é uma pequena cruz, uma rendição progressiva do “eu quero”
ao “seja feita a tua vontade”. A graça não anula a vontade humana; ela a
redime. É nesse processo que o cristão aprende que verdadeira liberdade não é
fazer o que se quer, mas querer o que Deus quer. Assim, a luta entre carne e
Espírito não é apenas um combate ético, mas uma reeducação da vontade, um
convite constante para que o thelēma humano volte a pulsar em harmonia com o
thelēma divino. E quando isso acontece, o que antes era fraqueza se transforma
em poder, e o que era desejo desordenado se torna adoração.
II. DESEJOS: DA ESCRAVIDÃO À REDENÇÃO
1. A experiência do deserto. O deserto
sempre foi o palco onde a vontade humana é revelada e provada. Foi ali que
Israel, recém-liberto do Egito, mostrou que a escravidão do corpo é mais fácil
de quebrar do que a escravidão do coração. O salmista recorda com tristeza: “Deixaram-se
levar da cobiça no deserto, e tentaram a Deus na solidão. E ele satisfez-lhes o
desejo, mas fez definhar a alma” (Sl
106.14,15). O termo hebraico usado aqui para cobiça é ta’avah (תַּאֲוָה),
que significa “anseio intenso”, “apetite ardente”. Trata-se de um desejo que
ultrapassa a fronteira da necessidade e invade o território da idolatria. Mesmo
depois de verem o mar se abrir e o maná descer do céu, os israelitas foram
vencidos pelo ta’avah. Em vez de se alegrarem com o cuidado de Deus, desejaram
o sabor do Egito (Nm 11.5,6). É uma cena trágica: o povo liberto
ansiando novamente pela escravidão. A mente ainda estava presa às cebolas e aos
peixes do Nilo, enquanto os pés caminhavam rumo à Terra Prometida.
Essa é a marca de uma vontade deformada, ela deseja o que Deus já
libertou, e resiste ao que Deus quer transformar. O deserto, no plano divino,
era mais que um trajeto geográfico; era uma escola espiritual. Deus conduziu
Israel por aquele caminho para testar o coração (Dt 8.2).
O verbo hebraico nasá (נָסָה), traduzido como “provar” ou “testar”,
implica o propósito pedagógico de revelar o que está dentro do ser humano. No
deserto, não há distrações. Lá, o povo teve de lidar com a verdade sobre si
mesmo: os desejos do Egito ainda viviam dentro deles. A psicologia chama isso
de “memória afetiva”: tendemos a romantizar o passado, esquecendo a dor e
lembrando apenas o prazer. Israel transformou a escravidão em nostalgia. E
assim, quando Deus lhes concedeu carne para comer, o prazer se converteu em
juízo.
O texto de Números 11.33-34
descreve o local como Quibrote-Hataavá “sepulcros da cobiça”. Cada túmulo ali
era o memorial de uma vontade que se recusou a ser moldada pela obediência.
Paulo revisita essa história em 1 Coríntios 10.6-13 para advertir a Igreja: os
mesmos impulsos que destruíram Israel podem escravizar o cristão hoje. O
apóstolo usa o verbo grego epithymeō (ἐπιθυμέω), “desejar intensamente”, o
mesmo termo usado por Tiago ao explicar que o pecado nasce do desejo (Tg 1.14).
Em outras palavras, a batalha entre carne e Espírito é, antes de tudo,
uma guerra de vontades, a escolha entre desejar o que Deus quer ou o que a
carne exige. O deserto, portanto, continua sendo o grande laboratório da alma.
É o lugar onde Deus não apenas revela a nossa fraqueza, mas também nos convida
a render a vontade ao Seu Espírito. A vontade que insiste em voltar ao Egito
nunca alcançará Canaã. Mas a vontade que aprende a desejar o que Deus deseja
experimenta o verdadeiro descanso. O discipulado cristão consiste exatamente
nisso: desaprender os desejos do Egito e aprender a desejar Cristo. Porque,
quando o Espírito governa o coração, até o deserto se transforma em altar.
2. Os desejos na era cristã. O drama dos desejos não terminou com o Antigo
Testamento; ele apenas mudou de cenário. Agora, o campo de batalha é o coração
do discípulo de Cristo. A diferença essencial é que, pela cruz, a vitória já
foi conquistada. Em Cristo, o poder do pecado foi quebrado, e o crente recebeu
a capacidade real de viver em novidade de vida (Rm 6.3-6,11-14). O verbo grego usado por Paulo, katargeō
(καταργέω), traduzido como “anular” ou “tornar inoperante”, revela que a antiga
escravidão da carne foi desativada pelo poder da morte e ressurreição de Jesus.
O pecado não é mais o senhor; Cristo é. Entretanto, a vitória espiritual não
elimina a tensão interior. Enquanto habitamos este corpo mortal, o conflito
entre a vontade da carne e a vontade do Espírito persiste. Paulo descreve essa
batalha em Gálatas 5.17 com precisão
cirúrgica: “Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a
carne.” O verbo grego epithymeō (ἐπιθυμέω), “cobiçar”, expressa o anseio
intenso, a inclinação apaixonada que busca satisfação fora de Deus. É o mesmo
termo que Tiago usa para descrever a gênese do pecado (Tg 1.14).
A carne, sarx (σάρξ), representa a natureza humana decaída, inclinada à
autossuficiência e hostil à direção do Espírito. Essa oposição não é simbólica;
é existencial. O Espírito Santo habita o crente para renovar sua mente,
enquanto a carne insiste em impor o padrão do velho homem. Cada pensamento,
emoção e decisão tornam-se um campo de guerra. Por isso, Paulo afirma: “para
que não façais o que quereis” (Gl 5.17).
A frase expressa o cerne do discipulado: a rendição da vontade. O
cristão é chamado a submeter seus desejos, não a negá-los de forma ascética,
mas a redirecioná-los para Deus. O Espírito não destrói os desejos humanos; Ele
os purifica. O prazer, a ambição, o amor e até a fome por significado, todos
são dons que, sem o governo do Espírito, tornam-se deuses. A vida cristã é,
portanto, uma contínua crucificação interior: “os que são de Cristo
crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gl 5.24).
O verbo stauroō (σταυρόω), “crucificar”, aqui no tempo aoristo, indica
um ato decisivo e definitivo que tem efeitos contínuos, o crente foi unido a
Cristo em Sua morte, e agora vive sustentado por Seu Espírito (Gl 2.20). Viver guiado pelo Espírito
não é um estado místico, mas uma escolha diária. É aprender a discernir a voz
divina em meio aos ruídos do ego. O Espírito Santo não força; Ele conduz. Ele
não impõe Sua vontade, mas forma Cristo em nós, até que o “querer e o efetuar” (Fp 2.13) sejam expressão da própria
vontade de Deus.
Esse é o ponto culminante da santificação: quando a vontade humana,
antes inclinada ao mal, é transformada pela graça em vontade cooperadora com o
Espírito. Hoje, os desejos continuam sendo o espelho do coração. Aquilo que
desejamos revela quem governa nossa vida. Por isso, o convite de Paulo continua
ecoando: “Andai em Espírito” (Gl 5.16).
Essa expressão, no original grego peripateite pneumati (περιπατεῖτε
πνεύματι), significa literalmente “mantenham o ritmo de sua vida no Espírito”.
É uma imagem de caminhada, constante, consciente e relacional. Não se trata
apenas de evitar o pecado, mas de aprender a desejar como Jesus desejava. A era
cristã é a era da vontade redimida. O Espírito Santo habita em nós para
realinhar nossos desejos com os de Deus. E quanto mais Ele governa a vontade,
mais livres nos tornamos.
O cristão maduro não é aquele que não sente tentações, mas aquele que
aprendeu a desejar corretamente. Porque, no fim, a verdadeira liberdade não
está em fazer o que queremos, mas em querer o que o Espírito quer.
3. A decisão do homem redimido. A salvação não é apenas um livramento da
condenação eterna; é uma libertação real do poder do pecado. Quando o Espírito
Santo regenera o coração humano, Ele não apenas perdoa, mas transforma a
estrutura mais profunda da vontade. Paulo declara: “Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne, mas
os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito” (Rm 8.5).
O verbo grego usado aqui para “cogitar” é phronein, que significa “ter a
mente voltada, pensar continuamente”. Assim, a nova vida em Cristo não é uma
experiência emocional isolada, mas uma mudança radical de mentalidade e
direção. Antes da regeneração, a vontade humana estava escravizada ao pecado.
Como escreve Horton (2024, p. 531), “a vontade, corrompida pelo
pecado, não possui em si mesma poder de retornar a Deus; é o Espírito quem
desperta, convence e redireciona o coração humano”. Isso explica por que o
crente redimido agora se inclina “para as coisas do Espírito” (Rm 8.5).
A vontade, outrora inclinada para o ego e a carne, é agora habilitada
pela graça a desejar o que agrada a Deus (Fp
2.13). Contudo, a carne (sarx), expressão paulina para a natureza caída,
ainda tenta reassumir o controle. Ela sussurra velhos desejos, reacende antigos
hábitos e busca corromper a nova natureza.
Por isso, Paulo ordena: “Fazei morrer (nekrosate) a vossa natureza
terrena” (Cl 3.5). O verbo está no
imperativo ativo, indicando que a mortificação é um ato contínuo e deliberado,
um processo diário de cooperação com o Espírito.
Como ensina Antônio Gilberto (apud Bíblia de Estudo Pentecostal, p.
1798), “a santificação é progressiva: o crente precisa submeter sua vontade
constantemente ao domínio do Espírito Santo”.
O homem redimido, portanto, vive num campo de batalha interior. O
conflito entre carne e Espírito não é sinal de fraqueza, mas evidência de vida
espiritual. “Pois a carne milita contra o Espírito” (Gl 5.17), e o verbo grego epithumei (“deseja intensamente”)
descreve essa luta como uma tensão de vontades. A carne deseja autonomia; o
Espírito deseja comunhão. O redimido escolhe, a cada manhã, a quem entregará o
governo de sua alma.
Segundo
Silas Queiroz (2021, p. 98), “a vontade é a expressão mais nobre da alma;
quando redimida, ela se torna instrumento de adoração”. Essa verdade muda
tudo.
Não é mais o homem que luta para agradar a Deus, mas Deus que, pelo
Espírito, molda a vontade do homem para que deseje o que Ele deseja. A graça
não apenas perdoa; ela reprograma a direção da alma. O resultado é visível. O
homem redimido não apenas evita o pecado; ele frutifica. O Espírito o conduz a
uma vida de pureza, domínio próprio e amor. Paulo resume: “Se vivemos no
Espírito, andemos também no Espírito” (Gl
5.25). O verbo “andar” (stoichein) significa “seguir em linha reta”,
indicando disciplina espiritual e coerência de vida. Andar no Espírito é manter
o passo com Deus, submeter a vontade humana ao compasso divino. O verdadeiro
sinal de maturidade cristã não é ausência de tentação, mas perseverança em
resisti-la. O homem redimido aprendeu que a liberdade não é fazer o que quer,
mas querer o que Deus quer. Ele sabe que cada decisão é um altar onde a vontade
humana é colocada diante do fogo do Espírito. E ali, no segredo da obediência,
a graça vence novamente a carne.
III. O ENSINO SOBRE OS DESEJOS, EM TIAGO
1. Atração e engano. Tiago 1.14,15 trata dos desejos carnais e suas consequências.
Empregando o conhecido termo “concupiscência” (epithumia) com o sentido de
“maus desejos”, o apóstolo refere-se ao processo de tentação e pecado: “Mas
cada um é tentado, quando atraído e engodado por sua própria concupiscência” (Tg 1.14). A faculdade da vontade é
retratada neste texto como um elemento de comunicação interna que tem a
capacidade de atrair e enganar. Assim sendo, o mau desejo é capaz de afetar a
própria razão, levando-a a acreditar que o pecado não produz consequências
ruins, mas boas. Nesse processo, a mente é entorpecida depois do desejo ter sido
aguçado.
A batalha contra o pecado começa muito antes de qualquer ato. Ela nasce
dentro da mente, em um terreno silencioso e quase invisível: o coração humano.
Tiago descreve esse processo com uma precisão espiritual impressionante: “Cada um é tentado, quando atraído e engodado
pela sua própria concupiscência” (Tg
1.14).
O termo grego usado para “concupiscência” é epithumía, que significa “um
desejo intenso, uma ânsia dominadora”. Não é apenas vontade, é desejo em
ebulição, uma força que tenta ocupar o lugar da obediência. O apóstolo mostra
que o problema não está nas circunstâncias, mas dentro de nós. O verbo
“atraído” vem de exelkó, usado na pesca, e descreve o movimento do peixe que,
seduzido pelo brilho da isca, se aproxima até ser fisgado. É uma imagem
poderosa: o desejo pecaminoso lança sua isca nas águas da alma e atrai a
vontade humana até prendê-la. A seguir, Tiago usa deleazó (“enganado” ou
“seduzido”), um termo usado para caçadas.
Assim, somos ao mesmo tempo o peixe fisgado e a presa enredada, o desejo
nos convence de que o pecado não trará morte, mas prazer, alívio ou satisfação.
Perceba o que Tiago faz aqui: ele revela que o pecado não começa na ação, mas
na crença enganosa de que podemos controlar o desejo.
O homem se deixa atrair, e sua razão é persuadida a justificar o erro. A
mente é entorpecida, a consciência silenciada, e o coração se torna cúmplice da
tentação. O engano é interno, e é por isso que o apóstolo não culpa o diabo,
mas o próprio homem.
Como observa MacArthur (2017, p. 1904), “Tiago transfere a
responsabilidade do pecado do tentador para o tentado”. Essa é uma verdade que
incomoda, mas liberta.
A vontade humana é, como explica Silas Queiroz (2021, p. 57), “o campo
de batalha onde corpo, alma e espírito se enfrentam”. Quando o desejo não é
submetido ao Espírito, ele sequestra a razão e reescreve as prioridades da
alma. Por isso, Tiago mostra o ciclo completo: o desejo gera o pecado, e o
pecado, consumado, gera a morte (Tg
1.15).
É uma progressão inevitável, a cobiça fecunda o ato, o ato dá à luz a
culpa, e a culpa, se não for levada à cruz, conduz à ruína espiritual. Mas há
uma boa notícia: o Espírito Santo é o único capaz de quebrar esse ciclo. Ele
não apenas convence o homem do pecado, mas ilumina a mente obscurecida. O mesmo
Espírito que habita o crente (Rm 8.11)
capacita-o a reconhecer a isca antes de mordê-la. Quando o desejo começa a
despertar, o Espírito fala, e o coração sensível ouve. O segredo da vitória não
é força de vontade, mas vontade rendida.
Segundo French L. Arrington (2014, p. 501), “a tentação só tem poder
sobre quem tenta satisfazer o desejo fora da vontade de Deus”. Por isso,
Tiago nos chama a uma fé prática e vigilante: discernir o momento exato em que
o desejo tenta ocupar o trono da alma e substitui-lo pela obediência. O cristão
maduro não nega o desejo; ele o disciplina. Aprende a identificar as iscas do
inimigo e a responder com a Palavra: “Escondi a tua palavra no meu coração,
para não pecar contra ti” (Sl 119.11).
Esse texto não é apenas um alerta; é um espelho. Ele nos convida à
autoavaliação espiritual: o que tem governado minha vontade? Quais desejos têm
sido alimentados no silêncio da alma? Tiago nos lembra que a tentação não é o
fim da fé, mas o campo onde ela é provada e amadurecida. A cada vez que
escolhemos a voz do Espírito em vez do apelo da carne, a imagem de Cristo é
formada em nós, e a vontade humana, antes escrava, torna-se finalmente livre.
2. Abortando o processo. O pecado raramente chega de súbito. Ele se
forma em silêncio, nas sombras dos desejos não disciplinados. Tiago, com
precisão cirúrgica, descreve o nascimento dessa tragédia moral: o desejo,
quando encontra espaço, concebe; e o que nasce dessa gestação é o pecado e,
amadurecido, ele gera morte (Tg 1.15).
A metáfora é poderosa: o apóstolo fala de um processo interno, gradual,
quase invisível, mas que termina sempre da mesma forma na ruína espiritual. O
termo grego que Tiago usa para “concupiscência” é epithymía (ἐπιθυμία), que não
é apenas um desejo natural, mas um anseio desordenado, inflamado, que
ultrapassa o limite da vontade santificada. É o desejo que, em vez de servir,
passa a dominar.
Amos Yong observa que “o pecado, antes de ser um ato, é um desarranjo do
amor; amamos o que não deveríamos, e amamos menos o que deveríamos amar” (YONG,
2011). Essa inversão interior é o início do afastamento de Deus. Abortar o
processo, portanto, não é apenas resistir à tentação já manifesta, mas
discernir e cortar pela raiz o desejo deformado antes que ele conceba o pecado.
Como ensina Anthony D. Palma, “a santificação começa no campo
invisível da mente e das afeições, onde os pensamentos e desejos precisam ser
julgados à luz da Palavra” (PALMA, 2012). O verdadeiro campo de batalha é
interno e a vigilância espiritual é o escudo que impede o inimigo de penetrar o
coração.
Quando Tiago fala que “a concupiscência, havendo concebido, dá à luz o
pecado”, ele usa o verbo syllambánō (συλλαμβάνω), o mesmo empregado para
“conceber” uma vida no ventre. A imagem é vívida: o desejo, quando alimentado,
se une à vontade e gera uma ação pecaminosa. O Espírito Santo nos chama, então,
a interromper essa gestação espiritual, a abortar o mal antes que nasça. Não se
trata de repressão cega, mas de substituição santa: matar o desejo errado
alimentando o desejo certo, o de agradar a Deus (Gl 5.16-17).
A Bíblia de Estudo Pentecostal observa que o “processo da tentação
inclui atração, engano e concessão” (CPAD, 1995). A atração desperta, o engano
convence e a concessão consuma. É por isso que a oração do Pai Nosso nos ensina
a pedir: “não nos deixes cair em tentação” (Mt
6.13). Jesus sabia que o maior perigo não é a tentação em si, mas o flerte
com ela. É a mente entretida com o pecado que dá permissão ao desejo para
crescer.
Craig Keener comenta que “Tiago ecoa a sabedoria sapiencial judaica,
onde o pecado é um processo de autoengano progressivo” (KEENER, 2014).
É por isso que Paulo ordena: “Mortificai, pois, os vossos membros que
estão sobre a terra” (Cl 3.5).
O verbo nekroō (νεκρόω) significa “fazer morrer”, “privar de força
vital”. A fé madura não apenas resiste, mas sufoca o mal em seu nascimento,
antes que ele respire. O chamado pastoral desta lição é poderoso e urgente:
vigiar e orar não é apenas uma disciplina devocional, é um ato de sobrevivência
espiritual. Enquanto o mundo alimenta desejos desordenados, o cristão é chamado
a discernir o que nasce dentro de si. A vitória começa quando o Espírito Santo
encontra em nós um coração disposto a dizer “não” ao pecado e “sim” à vontade
de Deus. Que aprendamos, pela graça, a abortar todo processo que tenta
roubar-nos da vida abundante em Cristo.
CONCLUSÃO
Embora carreguemos dentro de nós a tendência pecaminosa herdada de Adão,
os desejos humanos não devem ser vistos apenas como inimigos da fé. A vontade é
uma dádiva divina, uma das faculdades mais nobres da alma, pela qual refletimos
a imagem do Criador. Quando submissa ao Espírito Santo, ela se torna o motor
que impulsiona o crente à obediência, ao serviço e ao amor. Deus não anulou
nossa vontade, Ele a redimiu em Cristo para que fosse instrumento de Sua
glória. O salmista declara: “O justo
florescerá como a palmeira e crescerá como o cedro do Líbano... mesmo na
velhice dará frutos” (Sl
92.12-14).
Essa vitalidade espiritual é resultado de uma vontade renovada,
fortalecida pela comunhão com Deus. O Espírito Santo reacende o ânimo e infunde
entusiasmo santo enthousiasmós, literalmente “ter Deus dentro de si”. Assim, a
energia interior que nos move para a vida é, na verdade, uma centelha da
própria presença divina em nós. O profeta Joel anunciou um tempo em que “vossos filhos e filhas profetizarão... e
vossos velhos terão sonhos” (Jl
2.28).
O mesmo Espírito que reprime o desejo carnal é o que desperta o desejo
santo. Ele transforma a força que antes nos inclinava ao pecado em poder para
cumprir a vontade de Deus. Stanley Horton afirma que “a vontade humana, quando
rendida ao Espírito, é capacitada a cooperar com a graça, tornando o crente
participante ativo da santificação” (HORTON, 2024, p. 311).
Tiago, por sua vez, nos lembra que toda decisão humana deve ser envolta
em dependência: “Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo”
(Tg 4.15).
Essa expressão ean ho Kyrios
thelēsē sublinha o reconhecimento de que toda vontade humana só encontra
plenitude dentro da vontade soberana de Deus. Não é passividade, mas submissão
ativa; não é desistência, mas confiança. Quando a vontade é guiada pelo Espírito,
ela se torna um rio que corre no curso certo.
Desejar passa a ser bênção, não maldição. A vida cristã, então, deixa de
ser uma luta exaustiva contra a carne e se torna uma jornada alegre de
cooperação com o Espírito. O desejo deixa de gerar pecado e passa a gerar
frutos: amor, alegria, paz, domínio próprio (Gl 5.22-23).
A verdadeira maturidade espiritual consiste em aprender a desejar o que
Deus deseja. Quando isso acontece, a alma encontra descanso, o corpo encontra
propósito e a mente encontra direção. A vontade humana, redimida pela graça,
torna-se o eco da vontade divina em nós. Que cada dia seja vivido com esse
clamor: “Senhor, inclina o meu coração aos teus testemunhos e não à cobiça” (Sl 119.36).
Abaixo estão três aplicações práticas, extraídas de toda a teologia,
exegese e espiritualidade desenvolvidas na Lição sobre a Vontade, à luz de
Gálatas 5, Tiago 1 e 4, e dos princípios vistos nas partes anteriores. O foco
da lição é discipular, pastoral e prático, transformando o conteúdo teológico
em atitudes concretas para o dia a dia:
1. Submeta seus desejos à direção do Espírito Santo: A verdadeira liberdade não está
em fazer o que se quer, mas em querer o que Deus quer. A carne insiste em
transformar desejos legítimos em ídolos sutis. O Espírito, porém, disciplina o
coração, redirecionando nossos anseios para o propósito eterno. Antes de cada
decisão, grande ou pequena, ore e pergunte: “Essa escolha glorifica a
Deus ou apenas satisfaz a minha vontade?” (Gl
5.16-17). Cultive o hábito diário de consultar o Espírito Santo antes de
agir. Essa prática espiritual molda o caráter e alinha a vontade humana à
divina (Rm 12.2).
2. Vigie seus pensamentos, pois o pecado nasce na vontade antes de se
tornar ação: Tiago ensina que o pecado não começa na queda, mas na concepção do
desejo (Tg 1.14-15). Isso significa
que o combate precisa acontecer no campo das intenções, antes que o desejo
amadureça e gere pecado. Desenvolva discernimento espiritual para identificar
desejos perigosos ainda em sua fase inicial. Substitua-os por pensamentos
renovados pela Palavra (Fp 4.8). A
vigilância constante e a oração (Mt
26.41) funcionam como muralhas espirituais que impedem que maus desejos se
transformem em atitudes destrutivas.
3. Transforme sua vontade em instrumento de adoração e serviço: Deus não quer destruir sua
vontade, mas santificá-la. A graça não apaga o querer humano; ela o transforma
em cooperação com o propósito divino. Quando guiada pelo Espírito, a vontade se
torna força criativa para o bem, motor de perseverança e expressão de amor. Ore
diariamente como Jesus orou: “Não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22.42). Sirva ao Senhor com
entusiasmo (enthousiasmós “cheio de Deus”) nas pequenas tarefas do cotidiano.
Faça de sua vontade um altar onde cada decisão se torne um ato de adoração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário