segunda-feira, 23 de junho de 2014

A Sabedoria Piedosa



A Sabedoria Piedosa (3.13-18)

3:13: Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo teu bom procedimento obras em mansidão de sabedoria.

O homem verdadeiramente sábio não se esquece de seus deveres morais, tanto para consigo mesmo como para com a igreja cristã. Não podemos separar a sabedoria da conduta moral diária. Aquele que semeia as contendas, e busca os seus próprios interesses, quando muito, é sábio somente segundo o mundo. Ele não compartilha da qualidade da sabedoria divina, da penetração do pensamento divino, da ordem e da natureza hígida(Respeitante à saúde. Que tem higidez; sadio, são.) do conhecimento celestial. A sabedoria autêntica resulta em uma vida cristã autêntica. É isso que o autor sagrado diz aqui.
«...Quem entre vós é sábio e entendido?...» Essas palavras refletem um artifício retórico(E. Ling. Estudo do uso persuasivo da linguagem, em especial para o treinamento de oradores. [Tradicionalmente cinco são as partes do estudo retórico: (a) a inventio, ou descoberta de argumentos; (b) a dispositio, ou arranjo das idéias; (c) a elocutio, ou descoberta da expressão apropriada para cada idéia, e que inclui o estudo das figuras ou tropos; (d) a memoria, ou memorização do discurso; e (e) a pronuntiatio, ou apresentação oral do discurso para uma audiência.] ) comum, o da diatribe(Crítica acerba; escrito ou discurso violento e injurioso), o estilo de escrito empregado pelo autor sagrado.
«...sábio e entendido...» Provavelmente temos aqui um pleonasmo(Redundância de termos que em certos casos têm emprego legítimo, para conferir à expressão mais vigor, ou clareza. Ex.: Vi com estes olhos que a terra há de comer) retórico, não devendo nós compreender coisas diferentes por «sabedoria» e por «conhecimento». A distinção popular de que o «conhecimento» é o fundo de proposições conhecidas, ao passo que a sabedoria é a habilidade de usar devidamente esse conhecimento, é válida, embora talvez não fosse tencionada pelo autor sagrado. Em qualquer caso, conforme o texto sagrado passa a mostrar, a sabedoria é uma qualidade divina, da qual o homem pode participar, mediante a iluminação do Espírito Santo. (Ver o décimo sétimo versículo deste capítulo. Comparar com Ef 1:17, onde também há notas expositivas sobre a «sabedoria» e o «conhecimento»).
A sabedoria piedosa leva seu possuidor a ter profundo conhecimento do Pai e do Filho, e isso lhe transforma a natureza, com o propósito de infundir-lhe a imagem de Cristo, mediante o que o indivíduo chega a ser glorificado (ver Rm 8:29,30).
«...sábio...» No grego é sophos», que nos escritos clássicos era termo usado para indicar astuto, conhecedor das ciências, habilidoso em alguma arte ou artesanato. Nas páginas do N.T., o termo se reveste dos seguintes significados: l. Habilidoso em algum artesanato (ver I Co 3:10). 2. Letrado, bem-educado naquilo que o mundo considera educação e realizações intelectuais (ver Rm 1:14,22; I Co 1:19,26 e 3:18). Nesse sentido é que a palavra era usada para indicar os doutores da lei, entre os judeus (ver Mt 11:25), ou os mestres cristãos (ver Mt 23:34). 3. Além disso, há aquela sabedoria prática, empregada na observância da lei da piedade e da honestidade (ver Ef 5:15 e I Co 6:5). 4. Porém, a palavra «sabedoria» também é usada no N.T. no sentido filosófico e teológico mais elevado, uma qualidade divina transmitida ao homem mediante a iluminação do Espírito, segundo salientamos mais acima. Isso confere discernimento quanto à piedade e à transformação segundo a imagem de Cristo. (Ver Rm 16:27; I Tm 1:17; Ef 1:17, 18; Ju 25; I Co 1:30). Cristo é a Sabedoria personificada, conforme vemos na última dessas referências.
Há um «dom da sabedoria» (ver I Co 12:8), que confere ao crente um discernimento especial acerca de problemas, de questões e de realidades espirituais, mais ou menos aquilo que Salomão possuía. Se tivéssemos nas igrejas um bom número de pessoas assim dotadas, quão grande seria a ajuda! Contudo, todos os crentes, supostamente, devem possuir algo desse dom, e exercê-lo. Os mestres e os lideres evangélicos são reputados responsáveis, segundo as palavras deste texto, por buscarem e usarem a sabedoria.
«...conhecimento...» Nos escritos gregos clássicos, o vocábulo «episteme» é freqüentemente usado como sinônimo ou quase sinônimo de «sabedoria»; e isso significa «hábil», «versado», em algum conhecimento científico ou filosófico. Se, no texto presente, há certa distinção entre o conhecimento e a sabedoria, então temos de dizer que o «conhecimento» alude mais à eficiência em um «corpo de conhecimento» de categoria espiritual, o desenvolvimento inteligente das faculdades mentais acerca de propósitos espirituais. A sabedoria certamente é a mais transcendental dessas duas qualidades; e é isso que é desenvolvido nos versículos seguintes. O conhecimento tem a tendência de inchar, quando não é espiritualmente controlado (ver I Co 8:1), mas a sabedoria sempre reconhece suas origens.

O conhecimento se orgulha de ter aprendido tanto,
A sabedoria é humilde, porque não sabe mais.

«...Mansidão de sabedoria...» No grego temos o adjetivo «prautes», que quer dizer «gentileza», «humildade», «cortesia», «mansidão». Trata-se de um dos aspectos do fruto do Espírito Santo, o que significa que se manifesta mediante o desenvolvimento espiritual, através do poder divino. É o oposto mesmo da arrogância, que produz a dissensão, e que o autor passa agora a denunciar. Por isso mesmo, Pirke Aboth iv. 11 fala sobre o perigo constante por que passavam os rabinos: «Aquele que é arrogante em suas decisões, é tolo, ímpio e altivo em seu espírito». A sabedoria é a base da qualidade da mansidão; e é essa qualidade que os mestres e os líderes cristãos devem possuir, acima de todas as demais qualidades. De outro modo, serão eles uma força destruidora na igreja, e não uma força edificante, porquanto passarão mais tempo edificando sua própria reputação e orgulho do que exaltando a Cristo e edificando a sua igreja.
«...mediante condigno proceder, as suas obras...» A sabedoria nada será, a menos que se manifeste na forma de boas obras e de uma vida moral e espiritual correta. Também precisa ser frutífera e poderosa, tal como se espera que seja a fé cristã (ver Tg 2:14 e ss.), porquanto, de outro modo, será algo morto e inútil. Mediante sua vida boa e pacífica, o homem demonstrará a origem piedosa e divina de sua sabedoria. Portanto, o sábio é convidado a demonstrar a validade de sua sabedoria pelas suas obras de mansidão. A sabedoria que não é comprovada desse modo é uma sabedoria falsa; e mostra-se ainda mais falsa quando se torna motivo de orgulho e de contenda.
«Tiago compartilha do conceito bíblico geral que a sabedoria não consiste apenas no conhecimento, na astúcia e na habilidade, mas antes, em uma profunda compreensão sobre o que é e deve ser a vida piedosa. Tal sabedoria produz concórdia e harmonia entre as pessoas e os grupos. Faz agudo contraste com o egoísmo calculista que é a causa de 'desordem' social e de todas as 'práticas vis'... O astuto, o esperto, o manipulador habilidoso, está convencido que sua sagacidade superior é o que os sofisticados denominam de 'egoísmo iluminado', o 'conhecimento', a manipulação de homens e de circunstâncias, para a satisfação de sua ganância. Para obter a sua finalidade, o homem astuto não mostra escrúpulos em mentir, desunir, enganar ou subornar, se pensa que poderá evitar ser apanhado. Uma boa parte da astúcia de que ele se orgulha é a sua habilidade de 'encobrir', de 'passar despercebido'. Se a sua ambição só puder ser satisfeita mediante a deslealdade para com seus amigos, ou mediante a crueldade para com suas vítimas, isso é lamentável, mas é o preço que o 'realista paga para ganhar o único sucesso que vale a pena ter neste mundo'». (Easton, in loc.).
«...proceder...» No grego é usado o termo «anastrophe», «conduta», «comportamento», o caráter geral de uma vida, algo que é indicado, nas páginas do N.T., pela metáfora do «andar», que é de uso mui freqüente. O «sábio» crente deve ser pessoa de uma conduta repleta de boas obras, efetuadas em mansidão. Somente a sabedoria divina, uma qualidade divinamente transmitida, pode tornar bem-sucedida a vida do crente. É algo por demais exigente para a personalidade humana sem ajuda.
«Ações, ações, ações, é o clamor de Tiago. 'Isto deveríeis ter feito, sem deixardes de fazer aquelas outras'. Sem a prática cristã, todas as outras coisas que alguém professe possuir é sal que já perdeu o sabor». (Plummer, in loc.).

3:14: Mas, te tendei amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade.
«...pelo contrário...», isto é, se vos faltar a sabedoria espiritual e sua companheira inseparável, a mansidão. A quem faltam essas qualidades é apenas um orgulhoso, que não sabe mais o que fazer para exaltar-se, mas cujo homem interior, cuja alma, não tardará por estar tomada de contendas e amarguras carnais, gloriando-se em si mesmo, e não em Cristo.
«...vosso coração...» O termo «coração», no N.T., tal como nos idiomas modernos, indica o homem real, a alma ou espírito. Algumas vezes esse vocábulo alude especificamente às manifestações emocionais ou intelectuais do espírito humano, mas nunca sem á idéia que tais qualidades são expressões do homem real. A sabedoria pervertida, pois, corrompe o próprio homem, não sendo um lapso acidental e ocasional de má conduta.
«...inveja amargurada...» Um mestre inveja a outro, ou um líder eclesiástico se enche de ciúmes por causa de outro, porque lhe parece «melhor» ou «potencialmente melhor» do que ele mesmo, ameaçando assim atrair mais discípulos e louvor do que ele. Sua alma está doente, e ele começa a agir como servo do diabo, e não como um líder da igreja de Cristo. A inveja é uma das obras da carne, uma espécie de ódio, o contrário do amor, que é o fator orientador na família divina (ver Jo 14:21 e 15:10). O termo grego aqui usado é «zelos», que significa «ardor», «ansiedade», «zelo», mas que, em mau sentido, significa «ambição desmedida», «emulação», «inveja». Portanto, ao deixar-se arrastar por tal defeito de caráter o indivíduo se esquece de que está servindo a Cristo, e começa a servir a si mesmo, sem quaisquer reservas. Essa atitude propaga a enfermidade, e, logo, a igreja se vê despedaçada por facções que defendem seus respectivos heróis. Seu zelo é «amargo» com interesses próprios. A fonte expede água salobra e abominável. Ao invés de alguém ser consumido de zelo pelo Senhor, o zelo carnal corrói a igreja. Assim, pois, supostos líderes carnais se tornam «asnos carregados de livros», conforme a literatura rabínica descreve os mestres orgulhosos e egocêntricos(Diz-se daquele que refere tudo ao próprio eu, tomado como centro de todo o interesse; personalista). Disse Vincent (in loc.): «A emulação é a melhor tradução aqui, o que não envolve, necessariamente, a inveja; mas pode ser repleta do espírito de autodevoção».
«...sentimento faccioso...» As rivalidades entre os mestres logo criam rivalidades na igreja. Os homens esforçam-se por ser, cada qual, o líder mais poderoso; e aqueles que os apóiam adicionam combustível ao fogo, até que tudo é consumido pelas chamas devoradoras da carnallidade. Todos são «zelotes», mas não em favor de Cristo; são todos ambiciosos, mas somente em proveito próprio; todos estão consumidos de ardor, mas não do fogo celestial, e, sim, do fogo do inferno. As dissensões eclesiásticas sempre foram caracterizadas por situações assim, e quanto mais homens carnais são exaltados e transformados em heróis, ou se apresentam a outros como tais, maior é o desastre, embora tais homens se apresentem como quem salvará o investimento divino sobre a terra. (Quanto ao «sentimento faccioso» em resultado da carnalidade, ver I Co 3:3).
O termo grego aqui usado eríthia, subentende a «inclinação por usar meios indignos e divisórios para promover os próprios interesses. (Comparar com Rm 2:8; II Co 12:20 e Gl 5:20») (Ropes, in loc.). «Realmente indica o vício de um líder ou de um partido, criado pelo orgulho próprio; é a ambição partidária, a rivalidade partidária». (Hort).
Essa palavra veio a ser «...aplicada àqueles que servem em posições oficiais por causa de seus interesses egoístas, os quais, com essa finalidade, promovem o espírito partidário e faccioso. Por isso é que Rm 2:8 diz que eles são contenciosos, ou, literalmente, 'de facções'». (Vincent, in loc.).
«...nem vos glorieis disso...» Nada existe nisso de que um homem se possa orgulhar, e ninguém deveria sentir orgulho por esse tipo de realização da carne. (Ver I Co 1:29,30). Essa forma de jactância(Vaidade, ostentação, gabo. Orgulho, arrogância; altivez.), no próprio espírito faccioso, e naquilo que alguém ganha com isso, é uma afronta para a verdade, porquanto é exibição de uma vida falsa. A mente carnal, secretamente, quando não abertamente, se gloria em suas realizações, em sua forma de sabedoria pervertida. O autor sagrado repreende essa forma de atitude, como algo indigno em um mestre ou líder na igreja. Jacta-se ele: «O triunfo malicioso, o mínimo ponto de vantagem obtido por um partido, era exatamente aquilo que foi calculado para amargurar o outro lado; isso é realmente o 'mentir contra a verdade', porquanto tão tolos triunfos são freqüentemente obtidos às expensas da verdade». (Oesterley, in loc.). Tais indivíduos se gloriam em seu «conhecimento» falso e em seus efeitos prejudiciais, ao invés de se gloriarem da verdade do evangelho.
«...mintais contra a verdade...» O autor sagrado quis indicar a verdade cristã, em valores e ações práticas e morais. Tais homens negam a verdade da lei do amor, a propriedade da mansidão, que se deriva da sabedoria autêntica. Suas vidas e palavras se tornam «mentiras opostas», que não permitem que a verdade tenha o seu curso natural na comunidade cristã. Esses mestres e líderes se tornam «falsos para com a verdade», representando erroneamente aquilo que deveriam representar. Com suas vidas, elogiam a hipocrisia e a contenda, o partidarismo e o egoísmo. Eles mesmos são «mentiras espirituais», e vivem como aqueles que abandonaram qualquer busca séria pela espiritualidade. «Vangloriar-se alguém de uma sabedoria que não concorda com a vida diária, é, virtualmente, mentir contra a verdade do evangelho». (Faucett, in loc.).
Um certo homem professa o evangelho e o ensina; mas sua vida contradiz o que ele afirma. Assim, está transformando o evangelho em uma mentira, no que concerne aos outros. Pilatos, zombeteiro, indagou: «Que é a verdade!» Os que não fazem parte do cristianismo têm o direito de pedir e de receber uma resposta franca. Eles percebem as facções em luta no seio do cristianismo evangélico, e dizem para consigo mesmos: «O que eles ensinam é uma mentira!» E assim os próprios líderes evangélicos facciosos negam e contradizem a verdade do evangelho. O evangelho ensina um certo código moral; trata-se de um código digno de confiança; os homens devem vivê-lo a fim de recomendá-lo a outros. Tal como o próprio Cristo suportou contra si mesmo as «contradições dos pecadores» (ver Hb 12:3), assim também os líderes do evangelho chegam a contradizer o evangelho de Cristo e o seu ensinamento espiritual. Tornam-se outros tantos Judas Iscariotes. São líderes que não guiam a uma pátria determinada; reverteram os marcos.
Bode Judas: Conta-se a história de um belo bode branco, pertencente à New York Butcher's Dressed Meat Company. Esse bode começava a operar cedo pela manhã, e trabalhava até à noite, escoltando ovelhas desde o ponto de desembarque, à beira do rio, até ao matadouro. Visto que uma ovelha pode ser guiada, não precisando ser tangida, esse bode tinha grande sucesso em sua tarefa. Calcula-se que, durante sua carreira, guiou quatro e meio milhões de ovelhas à morte certa. Assim também, os lideres da igreja, quando contradizem ao evangelho com suas vidas e com suas crenças indignas, tornam-se líderes destruidores. Aquele que faz de si mesmo o centro da atenção na igreja, ao invés de exaltar a Cristo, já começou a desviar as ovelhas.

3:15: Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica.

A sabedoria mediante a qual o indivíduo se exalta a si mesmo e provoca rivalidades no seio da igreja, não pode ser atribuída à inspiração celeste; não «desce» dos céus, não é «enviada por Deus». Não procede da iluminação do Espírito Santo, conforme deve ser toda a sabedoria verdadeira (ver Ef 1:17,18). (Ver as notas expositivas, no décimo sétimo versículo deste capítulo, acerca dessa «sabedoria vinda do alto»). A sabedoria proveniente do alto se reveste de muitas qualidades boas. (Ver a lista no décimo sétimo versículo). Mas a sabedoria que vem da terra se reveste de qualidades negativas. Esse costume de fazer «listas de vícios» e «listas de virtudes» era algo visto comumente nos escritos hebreus do período helenista. Também era um artifício de ensino dos filósofos morais. De seus alunos requeriam que decorassem tais listas, mais ou menos como as crianças decoram os dez mandamentos, nas Escolas Dominicais de hoje em dia. (Entre a literatura representativa do judaísmo helenista, ver essa prática em Sabedoria de Salomão 7:7-22; 14:23-26. No N.T., ver Rm 1:29-31; I Tm 3:2-4; Ef 5:3 e ss.; Cl 3:5 e ss. e I Co 5:13). A última dessas referências encerra a nota detalhada sobre essa prática.
«...terrena...» Tal sabedoria se desenvolve sobre a terra, como propriedade de habitantes mundanos, que não têm direito a se considerarem espirituais. É uma sabedoria humana, não-inspirada do alto, egocêntrica, calculistamente carnal. Sua astúcia visa somente a vantagem particular, e não o cultivo da piedade. Deriva-se do «mundo frágil e finito da vida e dos negócios humanos», não sendo por isso, de modo algum, uma propriedade divina.
«...animal...» é tradução do termo grego «psuchike», «natural»,, isto é, pertencente à vida natural, em contraste com a vida sobrenatural . E animal porque está confinada à «alma», aquela porção que o homem tem em comum com outros animais, e em sentido algum transcende a esse tipo inferior de natureza. A palavra aqui empregada algumas vezes indica algo superior ao que é animal, a saber, aquilo que é próprio da alma, a «psuche». Os gnósticos empregavam esse vocábulo aplicando-o à espiritualidade inferior, que não chega ao nível do que é «espiritual» (pneumático), embora superior ao que é puramente físico. Eles classificavam os homens em três categorias: 1. Os indivíduos hílicos (ou «terrenos»). 2. Os psíquicos (dotados de alguma possibilidade de progresso, como eles atribuíam ao caso dos profetas do A.T.). 3. Os pneumáticos (ou verdadeiramente espirituais), cujo fim seria serem reabsorvidos no ser de Deus. Pode-se ver, pois, que o uso presente do termo se assemelha mais aos «hílicos» do que aos «psíquicos». No grego, «hyles» significa «matéria».
«...demoníaca...» Semelhantes ou pertencentes ao mundo dos seres malignos, demônios, espíritos maldosos. O termo grego «daemon», originalmente significava um «deus» inferior; mas, pelo tempo em que foi escrito o N.T., significava, regularmente, os espíritos malignos, pertencentes às fileiras de espíritos humanos malignos e desencarnados, ou às fileiras dos anjos inferiores «decaídos», ou desconhecidos, mas mesmo assim espíritos que não pertenciam à ordem dos anjos caídos.
O tipo de sabedoria carnal que os homens empregam para se exaltarem a si mesmos, pode ser até mesmo inspirada pelos demônios, um produto do reino das trevas, longe de ter origem celestial e divina. A igreja cristã primitiva aplicava essas descrições à heresia gnóstica, que floresceu com maior força depois da era apostólica. A sabedoria falsa dos gnósticos era adjetivada por todas essas coisas, inclusive como «demoníaca». Quanto ao «gnosticismo»( Ecletismo filosófico-religioso surgido nos primeiros séculos da nossa era e diversificado em numerosas seitas, e que visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio da gnose. [São dogmas do gnosticismo: a emanação, a queda, a redenção e a mediação, exercida por inúmeras potências celestes, entre a divindade e os homens. Relaciona-se o gnosticismo com a cabala, o neoplatonismo e as religiões orientais.] ), ver Cl 2:18). Sendo demoníaca, tal sabedoria é «hostil» a Deus, e não meramente uma forma inferior de sabedoria. Portanto, uma sabedoria hostil a Deus produz uma igreja dividida, e isso é uma vitória para o reino das trevas.
«Notemos o clímax da tríada(Conjunto de três pessoas ou três coisas; trindade, trilogia.): terrena, animal e diabólica, tal como em Tg 1:15». (Poteat, ia loc.).
«Tiago deixa subentendido que não seremos sábios, exceto quando iluminados por Deus, com uma sabedoria vinda do alto, através do Espírito. Entretanto, em tal caso, embora a mente humana se expanda, toda a sua acuidade será vaidade; e não somente isso, mas, sendo finalmente presa nos ardis de Satanás, tornar-se-á inteiramente delirante». (Calvino, in loc.).
Essa sabedoria é «terrena» porque busca distinções terrenas e pertence a categorias terrenas. Além disso, ela é sensual, isto é, natural (ver I Co 2:14), porque é o resultado de princípios que atuam sobre os homens naturais, como a inveja, a ambição, o orgulho, etc. Finalmente, ela é demoníaca, porque primeiramente veio do diabo, constituindo a imagem mesma de seu orgulho, de sua ambição, de sua malignidade e de sua falsidade. (Este parágrafo é baseado em sugestões de Scott, in loc.).

3:16: Porque onde há ciúme e sentimento faccioso, ai há confusão e toda obra má.

«...inveja e sentimento faccioso...» Temos aqui as mesmas duas palavras empregadas no décimo quarto versículo, onde os conceitos são comentados. As rivalidades entre os mestres cristãos, e as tentativas de cada qual por se exaltarem acima uns dos outros, o que resulta em cismas na igreja, ou, pelo menos, em facções, são evidências seguras de que muitos outros pecados existem em segundo plano, escondidos sob a capa de piedade. Isso se deve ao fato que o homem carnal, que exibe a carnalidade de certo modo, naturalmente pode exibi-la de outras maneiras também. Quando alguém deixa de viver sendo a «dimensão eterna», então passa a viver segundo a dimensão carnal, em muitas áreas de sua vida. E, dessa maneira, pode haver total naufrágio espiritual em uma congregação local de crentes.
O falso «sábio» conduz a si mesmo e a outros a toda a espécie de males, quando deveria estar liderando outros a Cristo. Quão grande é a sua dívida diante de Deus! Algum dia ele terá de encontrar-se consigo mesmo, e será julgado conforme aquilo que tiver praticado! Sua elevada posição perante os homens de nada lhe valerá, quando estiver perante Deus.
«...confusão...» No grego, «akatastasia», isto é, «desordem», «perturbação», «tribulação». A igreja cai em uma série de conflitos e lutas por poder, em que os chamados «mestres sábios» encabeçam, por assim dizer, exércitos adversários. Logo a igreja local cai em total confusão e desordem, mas nunca por inspiração do Espírito de Deus. (Ver I Co 14:33). Esse termo foi empregado por Políbio (1.70) para indicar a instabilidade política que se seguiu à morte de Alexandre. (Quanto a seu emprego espiritual, comparar com os trechos de Pv 26:28; I Co 14:33 e II Co 12:20).
«...cousas ruins...» No grego, o adjetivo é »phaulos», que significa «vil», «depravado», «indigno», «ruim». O autor sagrado não enumera as coisas que ele tinha em mente, porque, provavelmente, deixa isso em aberto, para ser preenchido pela imaginação dos seus leitores. Podemos pensar em imoralidades, desonestidade, furtos dos fundos da igreja, desrespeito à autoridade, filhos desobedientes. O que tiver de entortar, será entortado, porquanto a base espiritual da igreja já foi destruída. Em suma, cada uma das «obras da carne» (ver Gl 5:19-21) será praticada. O estado da igreja local inteira tornar-se-á vil, contrário totalmente às exigências morais do evangelho.

Por palavras e nomes que lutem os zelotes iracundos;
Cujas vidas são erradas, e nunca poderão ser endireitadas.

3:17: Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura, depois pacifica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocrisia.

«...sabedoria...» (Ver as notas no décimo terceiro versículo deste mesmo capítulo).

«...lá do alto...» No grego é «anothen», que significa «do alto», isto é, do «mundo celestial», em contraste com a sabedoria demoníaca e sensual dos mestres pervertidos (ver o décimo quinto versículo). Temos aqui a alusão à sabedoria divina, pois o «alto» é o lugar da habitação de Deus. É possível que essa expressão, além disso, seja um eufemismo para Deus, porquanto os judeus relutavam em usar o nome divino, substituindo-o por algum outro título, como «reino dos céus», ao invés de «reino de Deus». A sabedoria celestial é inspirada por Deus, e é sua propriedade particular. Os homens a recebem mediante a iluminação do Espírito Santo. (Ver Ef 1:17,18).
«...pura...» isto é, «não-contaminada», sem qualquer defeito moral, sem motivos ulteriores(Que está ou ocorre depois): livre do «espírito faccioso»; livre da ambição humana e da autoglorificação. Não é algo meio bom, meio mau; porquanto isso não poderia mesmo descrever a verdadeira sabedoria. (Ver Sabedoria 7:25). Trata-se de uma expressão pura, do íntimo; não tem falhas ocultas. Essa é a sua qualidade primária; e dessa qualidade se originam todas as outras, conforme se vê na lista abaixo. Tal sabedoria é isenta das corrupções humanas, que fazem parte integrante da sabedoria mundana; não conduz a qualquer facção e nem exaltação de um homem sobre outro; não contempla maldade moral, mas seu intuito constante é a prática do bem. É inocente de quaisquer motivos dúbios(Duvidoso, incerto; ambíguo), e seu intuito é glorificar unicamente a Deus.
O trecho de Sabedoria 7:25 atribui a sabedoria a uma emanação pura da parte de Deus, que retém a sua glória e pureza, e assim não pode ser atingida por nenhuma contaminação.
«...pacífica...» A sabedoria não é «contenciosa», nem «facciosa» e nem «beligerante». Não busca seus próprios interesses, às expensas de outrem, conforme faz a carnal sabedoria humana. Pelo contrário, confere a paz; alimenta-se da harmonia. O trecho de Pv 3:17, diz acerca da sabedoria: «Os seus caminhos são caminhos deliciosos e todas as suas veredas de paz», Bem-aventurados são os pacificadores, porquanto serão chamados filhos de Deus, conforme se aprende em Mt 5:9.
«...indulgente...» No grego temos o termo «piekes», isto é, «razoável», «cheio de consideração», «moderado», «gentil», qualidades essas que os homens facciosos e por demais ambiciosos não possuem. Antes, a sabedoria do homem espiritual é tratável, moderada, sem temperamento radical.
«...tratável...» No grego é «eupeithes», isto é, «facilmente persuadido», o contrário de «obstinado», que normalmente é o caráter dos homens por demais ambiciosos, que se tornam ditadores na igreja. Essa sabedoria é «aberta à razão». Pode ver o ponto de vista alheio, mudando suas próprias opiniões.
«...plena de misericórdia...» Os homens por demais ambiciosos tendem para a crueldade e para o mau temperamento. A verdadeira sabedoria produz profundo sentimento de misericórdia no homem interior. Notemos que o homem verdadeiramente sábio será «pleno» de misericórdia, tal como Deus. Através de sua misericórdia nos é permitido continuar em nosso caminho, na direção de Deus e da verdade, apesar de nossas muitas quedas e erros. O homem sábio segundo o mundo, entretanto, não demonstra misericórdia para com ninguém, e procura fazer nome para si mesmo, de modo brutal. Tal homem considera as pessoas meramente como objetos a serem usados para sua própria satisfação e exaltação. Não tem espírito de amor e nem senso altruísta genuíno; é alguém completamente egocêntrico, e acredita que deveria ser o centro da vida de outras pessoas, igualmente. Fez de si mesmo um deus, e destronizou Deus, até onde diz respeito à sua própria pessoa. Tornou-se em um ateu prático, a despeito das crenças que porventura professe. O indivíduo dotado de sabedoria falsa, outrossim, tem a boca cheia de maldição e amargura; mas o homem verdadeiramente sábio é cheio de misericórdia. Este último aplica o princípio do amor cristão em sua vida diária. (Ver Tg 1:27 e 2:13 quanto à simpatia do homem bom por aqueles que padecem necessidade, com o resultado que está sempre pronto a dar do que tem. Já o homem falsamente sábio nada dá; antes, recolhe tudo quanto pode obter).
Misericórdia: Consideremos os pontos seguintes, a respeito dessa qualidade cristã: 1. Deus é o exemplo supremo de misericórdia (ver Lc 6:36). 2. A misericórdia nos é ordenada nas Escrituras (ver Rm 12:30 e Cl 2:12). 3. Deve essa qualidade ser gravada no coração (ver Pv 3:3). 4. Deve ser uma das características dos crentes (ver Pv 37:26 e Is 57:1). 5. Deve ser demonstrada com ânimo alegre (ver Rm 12:8), quanto aos irmãos na fé (ver Zc 7:9), para com os que sofrem aflições (Lc 10:37) e até mesmo quanto aos animais (ver Pv 12:10). 6. É beneficente para com aqueles que a exibem (ver Pv 11:17). 7. Quem usa de misericórdia é bem-aventurado (ver Mt 5:7; Pv 14:21).
«...de bons frutos...» A sabedoria tem o caráter da misericórdia, cultivando o fruto do Espírito (ver Gl 5:22,23); e assim sua vida é repleta de piedade, sendo transformada para receber a imagem moral de Cristo, que é o supremo possuidor dessas qualidades. Neste caso, os «bons frutos» indicam as «boas obras». (Comparar com Mt 21:45; Gl 5:22; Ef 5:8 e Fp 1:11). Uma vez mais Tiago enfatiza a questão das «boas obras». Os feitos de bondade e de misericórdia (tal como se vê em Tg 1:27), mui provavelmente estão praticamente em foco.
«...imparcial...» Este adjetivo, no grego, é «adiákritos», literalmente, «não-dividido em julgamento», «sem variação», «de todo o coração». Provavelmente isso alude à situação dos versículos nono e décimo deste capítulo, onde vemos os homens sem sabedoria a abençoarem a Deus e a amaldiçoarem aos homens. Essa palavra também pode subentender que o homem verdadeiramente sábio é livre de «incertezas» espirituais; e, nesse caso, a questão da «mente dúplice» está em foco, tal como em Tg 1:6-8. O homem verdadeiramente sábio já se desfez da mente dúplice, entre as coisas terrenas e as celestiais; vive exclusivamente para a dimensão eterna; também pode julgar com imparcialidade, tratando dos homens com justiça e com honestidade.
«...sem fingimento...» O homem verdadeiramente sábio não precisa ser «insincero», e nem hipócrita, porquanto nada tem a ocultar, e não busca suas próprias vantagens. O vocábulo aqui usado é, especificamente, «sem hipocrisia». Tal homem não precisa viver como um ator, desempenhando um papel falso (que é o sentido original do vocábulo). Antes, vive na sinceridade. (Ver Rm 12:9; II Co 6:16 quanto a outros versículos de natureza similar). A sabedoria não opera por detrás de uma máscara, supostamente para o bem de outros, mas, na realidade, visando apenas os seus próprios interesses, conforme fazem certos mestres e líderes exageradamente ambiciosos nas igrejas.
«Verdadeiramente, essa sabedoria 'não pode ser obtida em troca de ouro, e nem a prata será pesada como seu preço'. Feliz é o homem que a encontra'. (Ver Pv 3:13-18).» (Punchard, m loc.).

3:18: Ora, o fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz.

A sabedoria é dotada de seus frutos, sendo produzida por uma atmosfera de paz; envolve rica colheita para o sábio, e para aqueles a quem ele ensina; a colheita é da santidade crescente; a colheita é perene(Que dura muitos anos. Que não acaba; perpétuo, imperecível, imperecedouro, eterno. Incessante, contínuo, ininterrupto), resultando na vida eterna.
«Quão formosos sobre os montes são os pés dos que trazem boas novas, que anunciam a paz» (Is 52:7). (Isso é trecho citado em Rm 10:15). Ali temos o «evangelho da paz», porquanto o evangelho tende por trazer a paz aos corações dos homens (ver Rm 5:1), estabelecendo a paz entre Deus e o homem (ver Cl 1:20). No estado de paz existe uma harmonia saudável, em contraste com os efeitos mortíferos das contendas e das divisões. Nessa atmosfera é possível o cultivo do fruto da justiça. Portanto, os crentes devem viver na atmosfera da paz. A paz é um dos aspectos do fruto do Espírito, isto é, do desenvolvimento espiritual, mediante o que assumimos a natureza moral de Cristo, através da transformação segundo a sua pessoa.
A conduta reta produz muitas recompensas, que resultam na vida eterna. O cultivo dos galardões é realizado na atmosfera da paz. E o homem justo, que é verdadeiramente sábio, sabe disso, evitando os interesses pessoais e o espírito contencioso, que não contribuem para essa finalidade.
« ...promovem a paz... » (Comparar com Mt 5:9). Os pacificadores serão chamados «filhos de Deus». Jesus, em sua cruz e missão, «estabeleceu a paz». Os homens deveriam seguir ativamente o exemplo por ele deixado. (Ver Ef 2:15 e Cl 1:20). Os pacificadores não são meramente aqueles que conciliam oponentes, para evitarem as brigas. Mas são aqueles que promovem ativamente a paz, mediante esforços planejados, procurando solucionar pendências com os inimigos e antagonistas. São exatamente o contrário daqueles que despertam contendas, e que agem devido à sua excessiva ambição (conforme é descrito no décimo quarto versículo deste capitulo).
«O alicerce lançado pela retidão, para nele ser apoiada a vida eterna, só pode ser lançado em paz, e por aqueles que praticam a paz. Isso equivale a dizer que a retidão inclui o espírito pacificador». (Ropes, in loc.). (

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