As Duas Sabedorias
(3.13-18)
Modos de vida
contrastantes são retratados nesta passagem, usando-se os dois
tipos de sabedoria;
e, embora esta perspectiva
seja basicamente judaica, a forma literária é grega.
3:13 Tiago já
fez a apologia da fala
singela, sincera;
agora, faz um
apelo. Quem
entre vós
é sábio e entendido?
Em certo
nível, esta é uma
pergunta que simplesmente quer
saber se alguém
se enquadra na descrição, mas num nível mais profundo
lembramo-nos de que l Co 1-3 descreve
uma igreja em
que um
ensino rival
vindicava possuir sabedoria
superior, e é possível
que isso
também estivesse acontecendo na comunidade de Tiago. Pelo menos Tiago sabia que
os mestres de 3:1 afirmavam ser compreensivos, pois de que outra maneira poderiam ensinar? É a tais pessoas, e
também às que
aspiram compreensão, que Tiago se dirige.
De que maneira
podem tais pessoas
"mostrar" sua
sabedoria? Mostre... Seria mediante a inteligente
refutação daquele que
discorda de sua
posição? De modo
algum; em
vez disso, que
mostre pelo seu
bom procedimento... Jesus havia dito
que distinguiríamos os verdadeiros
mestres dos falsos
pelo seu modo de viver (Mt 7:15-23). Tiago está
aplicando o ensino de seu Mestre. O procedimento era absolutamente
crucial para
a igreja primitiva.
Os presbíteros eram acima
de tudo exemplos
(l Pe 5:3; l Tm 4:12; 2 Tm 3:10-11), e, num
segundo plano,
mestres. Suas
qualificações enfatizam suas vidas exemplares, e, se há menção
da habilidade para
ensinar, esta é apenas
uma dentre outras muitas (l Tm 3;
Tt 1). O modo de viver
constituía também
um testemunho
importante (l Pe 2:12; 3:2, 16), visto que, se não houvesse sucesso
na evangelização de um
incrédulo, pelo
menos eliminava as desculpas
das bocas dos incrédulos
no dia do julgamento
final. Tiago declara que não é a ortodoxia da pessoa (pregação correta),
mas sua
ortopraxia(Correção mecânica
de deformações) (vida
correta) que
representa a marca
da verdadeira sabedoria. O crente
deve recusar o mestre
que não vive à semelhança
de Jesus; você deve descartar
a profissão de fé
que não
conduz à santidade.
Tiago
enfatiza duas marcas deste modo de viver. A primeira chama-se boas obras.
As obras — nosso
procedimento — falam mais alto do que nossas palavras (Mt 5:16). As obras
que determinada
pessoa realiza
demonstram onde tal
pessoa investiu verdadeiramente seu
coração (e.g., Mt 6:19-21, 24). Tiago elogia
práticas tais
como a caridade,
o cuidado às viúvas, como marcas de sabedoria.
A segunda marca
relaciona-se ao desempenho dessas obras em
mansidão de sabedoria.
De modo diferente
dos hipócritas de Mt 6:1-5, os verdadeiramente sábios sabem como
agir com mansidão (humildade):
não estão edificando suas próprias reputações.
À semelhança de
Moisés (Nm 12:3) e de Jesus (Mt 11:29; 21:5; 2 Co 10:1), não estão interessados em
defender-se. Evitam conflitos, e de modo especial
evitam fazer propaganda
de si mesmos.
A humildade
(ou mansidão)
é a marca do verdadeiro
sábio.
3:14 Por
outro lado,
se o coração do crente
é marcado, não pelo
comportamento santo, pela mansidão humilde e pelas boas obras,
mas revela amarga inveja e sentimento faccioso, o quadro
é outro, bem diferente. Todas estas palavras
descrevem as condições de vosso coração, e
refletem o ponto de vista
de Deus. A pessoa
não deve permitir
que essas
características lhes
penetrem na consciência de forma disfarçada. A inveja
mencionada por Tiago é "um zelo severíssimo", ou "rivalidade";
o mesmo termo
pode ter um
significado positivo,
o "zelo" que transparece noutras passagens
escriturísticas (e.g., l Rs 19:10), e é certo
que a pessoa com essa característica
persuadiu-se de que esse é seu caso. Na verdade, trata-se
de rigidez resultante
de orgulho pessoal. Amarga inveja é diferente do
amor e do zelo
firme de alguém
que tem plenitude
de Deus; "amargo"
é um adjetivo
que descreve bem
a vítima
da inveja; seria um
"zelo" tingido pela
amargura. Não importam os motivos esplendorosos que
podem ser proclamados: a dureza
áspera no tom
do cinismo demonstrado contra os adversários
revela a horrorosa inveja.
Com tais
vícios combina-se bem
o espírito faccioso,
que em
NIV é "ambição egoísta", (Gl 5:20; 2 Co 12:20). No calor da rivalidade,
o líder acha que deve retirar-se, de algum
modo, a fim
de "testemunhar
a verdade" que
o principal grupo
de cristãos rejeitou. Esta é uma questão extremamente sensível, visto
que a história
da igreja conhece grupos
que foram expulsos
ou tiveram de retirar-se cheios de dor
e tristeza, por
serem testemunhas da verdade;
houve épocas em que isto
foi necessário. Todavia,
com muita
freqüência o que
começa como
um testemunho
fica sutilmente maculado
pela rivalidade,
que induz à separação.
Se estes vícios
caracterizam seu coração,
não vos
glorieis, nem mintais contra a verdade.
"Não
mintais contra a verdade
é tradução literal do grego, que NIV traduziu:”não
negueis a verdade". Algumas pessoas poderiam estar
reivindicando, em total
oposição às evidências
levantadas por Tiago, estarem cheias
do Espírito de Deus.
Tiago lhes roga que
não agravem seu
problema ao continuar
asseverando que é Deus quem lhes
motiva tão
grande rivalidade.
Ao jactar-se de seu
zelo, ou
quando discutem sem
parar a justiça
de sua causa,
atiram a causa do reino
de Deus ao escândalo
e acabam cegos espiritualmente.
3:15 A pessoa invejosa não é
inspirada por Deus:
Essa não é a sabedoria
que vem do alto.
Tiago cria que
a sabedoria vem de Deus (1:5), visto ser
um de seus
maravilhosos dons
(1:17). O ensino judaico
também ligava a sabedoria
ao dom ou
à presença do Espírito
de Deus
(e.g., Gn 41:38-39; Êx 31:3-4; Pv 2:6; 8:22-31). Assim, poderíamos parafrasear
Tiago dizendo: "este comportamento não
é inspirado pelo Espírito
de Deus".
Qual é, então,
a fonte ou o caráter dessa "sabedoria"
que inspira tal tipo de pessoa?
Primeiramente, é terrena.
Aparentemente, afirmar
que algo
pertence à terra
não é mau,
mas torna-se mau
se afirmarmos que veio de Deus (l
Co 15:40). Por isso,
Tiago nos antecipa que a inspiração dessas pessoas
na melhor das hipóteses
provém delas mesmas, de seu ego natural. Em segundo lugar, é animal,
i.e., não-espiritual, carnal. O termo
é empregado noutras passagens
do Novo Testamento, com
outras traduções, para
caracterizar a pessoa que não tem o Espírito de Deus
(Jd 19), ou que
"não compreende as coisas do Espírito
de Deus" (l Co 2:14). Esta "sabedoria", então,
não faz
parte de sua
natureza redimida, mas
caracteriza a pessoa para
quem o verdadeiro caminho do Espírito
é estranho. Os caminhos
do mundo — o poder, o comando
(cf. Mc 10:45), a estratégia, as prerrogativas —
são os que
tais pessoas
entendem, não a mansidão
humilde, o amor,
a auto-entrega. Em
terceiro lugar,
é diabólica. Há uma fonte
de inspiração para essa "sabedoria", mas não é divina. As pessoas afirmam que aquele espírito de competição é inspirado. "É
inspirado, é mesmo", redargúi Tiago, "é inspirado pelo próprio diabo!".
Neste ponto, Tiago atingiu o xis
da questão.
3:16 Como
que para arrematar sua argumentação, Tiago prossegue: Pois
onde há inveja
e sentimento faccioso,
aí há confusão
e toda obra
má. Esta acusação não decorre de mera
argumentação baseada na "teoria
do dominó", mas
é a conseqüência lógica dos dois primeiros vícios. A
rivalidade e o espírito
partidário destroem a coesão da comunidade cristã, que
se edifica na unidade e no amor. Destruída a "cola", todo
tipo de desordem
e rebelião penetra a comunidade. Mais
do que isso,
a auto-afirmação e a independência
próprias da inveja, do "zelo" doentio,
destroem a capacidade de a comunidade disciplinar-se de acordo com a tradição
apostólica (Mt 18:15-20; Gl 5:25; 6:5). Destruídos os "freios" da reprovação mútua,
e havendo necessidade de "aceitar as coisas" por
medo do criticismo que
levaria outrem a formar
seu próprio partido ("panelinha"),
fica fácil ver
como toda
obra má vai infiltrando-se. Para Tiago, a solidariedade
comunitária é importantíssima como era para Paulo (2 Co 12:20;
Fp 2:4), visto
que, sem
ela, ocorre a desintegração moral e comunitária.
3:17
Contrastando de modo completo com a
"sabedoria" demoníaca, temos a sabedoria
que vem do alto.
Para salientá-la, Tiago relaciona um
catálogo de virtudes
que podem ser
comparadas, tanto em
forma quanto em conteúdo, com o catálogo
de Paulo quanto ao amor
e ao Espírito (l Co 13; Gl
5:22ss). Esta sabedoria é primeiramente pura,
o que significa que
a pessoa está sincera
e totalmente comprometida de seguir
com fidelidade
as diretrizes morais
de Deus; não
existem motivos pérfidos
ou injustos
por trás
de sua
santidade.
santidade.
Dessa pureza se diz que
conduz a outras virtudes: é pacífica (como em Hb 12:11; Pv 3:17), que se
refere não à paz
íntima, porém à paz comunitária;
moderada (Fp 4:5); l Tm 3:3; Tt 3:2), que
denota um espírito
conciliador, inimigo de contendas; e tratável,
que indica um
espírito aberto
ao aprendizado, maleável,
uma pessoa que com toda a alegria se submete à correção
de um erro ou ao aprendizado de uma nova verdade.
A sabedoria é prática, porque se apresenta cheia
de misericórdia (expressão grega
da qual se derivou a palavra esmola) e de bons frutos, que são
os atos de caridade
que Tiago já
discutiu (1:26-27; 2:18-26). Portanto, a sabedoria
não é primordialmente
um conceito
intelectual, mas uma habilidade
prática para discernir a vontade
de Deus e agir
em conformidade.
Finalmente, a sabedoria
é sem parcialidade, e sem hipocrisia,
i.e., imparcial e sincera, livre
de preconceitos. Não
ficou bem claro
se esta libertação de preconceitos
refere-se à ausência do espírito de partidarismo (imparcialidade
para receber outros irmãos
na fé), ou
se significa "ter
uma visão singela",
"firmeza de caráter"
(o oposto de 1:6-8). Talvez
se refira a esta última opção, visto que vem perto
de "sem
hipocrisia" (que
é tradução literal
do termo grego;
NIV preferiu "sincera"). Juntos, esses
termos indicam pessoas
cujos motivos
interiores são sinceros, sem hipocrisia, e cujos
atos externos
são coerentes. As pessoas jamais
precisarão duvidar "de onde
vieram", porque tais pessoas não têm espírito partidário
e agem da mesma forma
sempre perante
todas as pessoas.
3:18 Tiago
resume sua explanação
com um
provérbio: o fruto
da justiça semeia-se em paz para os que promovem
a paz. A colheita da bondade
ou da justiça
é bem conhecida
na literatura bíblica (e.g., Is 32:16-18;
Am 6:12). Em outras palavras,
boas obras serão
produzidas pelos atos dos
pacificadores. Algumas pessoas tentam ser justas de maneira tal que produzem divisões
na comunidade. Em
vez disso, o provérbio
assinala a bondade como
o fruto natural
da vida de um
pacificador, sendo esse o ponto
crucial de Tiago: a pacificação,
e não
uma violenta "luta
pela verdade",
é o que conduz à justiça.
A expressão reiterada "semeia-se em paz" apenas sublinha o fato
de que a pacificação é atividade que
produz verdadeira paz externa. O próprio Tiago é
retratado como pacificador em At 15 e 21, mas
seu ensinamento
não deriva
de uma preferência pessoal,
mas
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